Bayou Arcana é um dos títulos mais ansiosamente aguardados a emergir do dinâmico cenário britânico de gibis e graphic novels. Mas a antologia de horror “gótico-sulista” está causando espécie por razões que não se limitam a suas imagens e tramas sombrias. A antologia é fruto de um experimento singular que reúne uma equipe de ilustradoras formada inteiramente por mulheres e uma equipe de autores de texto composta só de homens. Ela ilustra como uma nova geração de mulheres – artistas e leitoras – está mudando radicalmente a aparência das histórias em quadrinhos.
“Há uma sensibilidade encontrada na arte de mulheres que simplesmente não aparece no trabalho de muitos homens”, explica James Pearson, que editou a antologia. Bayou Arcana relata a história de escravos foragidos que se refugiam em um pântano. “O modo como elas interpretam o horror possui uma profundidade adicional, e isso faz parte do experimento. É uma abordagem bastante sensível a um tema visceral.”
Prevista para sair este ano, a antologia chega no momento em que cresce o impulso por mudanças na cultura das HQs, ainda vista como sendo dominada por homens jovens, sérios, de cavanhaque e rabo de cavalo. “Historicamente falando, o setor das HQs sempre foi muito dominado por homens. Mas recentemente uma mudança vem ocorrendo”, diz Lisa Wood, cofundadora do festival Thought Bubble, um evento de seis dias de duração em Leeds que é descrito como o maior evento anual britânico que celebra todas as formas de “arte sequencial”. “De repente, estamos ouvindo as experiências e opiniões de mulheres sobre política, religião, sexo e maternidade. O mais importante, porém, é que essas histórias não são criadas exclusivamente para mulheres – elas são para todos.”
Políticas de combate ao assédio
Wood citou Persépolis, o livro autobiográfico (transposto para o cinema em um filme de animação indicado ao Oscar) de Marjane Satrapi sobre sua adolescência e juventude no Irã; Fish and Chocolate, de Kate Brown; e Fluffy, de Simone Lia, como exemplos da mudança. “Essas histórias abordam o gênero com humor delicado e emoção inteligente”, disse ela. O Thought Bubble, cujos workshops e fóruns em novembro celebraram as autoras e ilustradoras, reflete a voz crescente das mulheres num cenário que tradicionalmente tem sido masculino. O festival atraiu artistas renomadas, como Posy Simmonds, criadora de Tamara Drewe, e Suzy Varty, que em 1977 publicou a primeira antologia de HQs do Reino Unido, Heroine. Outras convidadas de uma nova geração incluíram artistas do grupo de HQs dinamarquês Penneveninder, a americana Becky Cloonan e a britânica Emma Vieceli.
“É realmente importante para nós dar destaque a mulheres no setor das HQs, especialmente porque muitas pessoas de talento acabam sendo passadas por cima por outras convenções de HQs no país”, diz Wood. “Basta olhar para a lista de convidados a qualquer grande convenção: a disparidade é evidente.”
Não são apenas as artistas e autoras que estão encontrando sua voz. Em conjunto com o site de campanhas sociais Change.org, um grupo de mulheres fãs de HQs nos Estados Unidos se prepara para lançar um movimento para combater o assédio em convenções de HQs. “O assédio físico e verbal é comum em convenções de HQs e outras convenções voltadas ao público geek – por parte de convidados, presentes e funcionários”, diz Jessica Plummer, uma das organizadoras de um abaixo-assinado que pede a adoção de políticas de combate ao assédio.
Fórmula que não funciona mais
“Já vi comentários sobre vários tipos de assédio, desde comentários inapropriados até estupro. Já vi mulheres sendo bolinadas por desconhecidos porque estavam trajando figurinos. No que diz respeito à cultura mais ampla dos quadrinhos, muitas mulheres fãs de HQs contam que são ignoradas, assediadas ou tratadas com hostilidade nas lojas de HQs. E ocorre bullying persistente online contra as mulheres.”
O abaixo-assinado previsto chegará na esteira de outro, em 2011, que expressou a revolta de leitoras com a falta de autoras e personagens femininos na DC Comics, dona dos direitos sobre personagens como Superman e Batman. Quando a DC Comics relançou sua linha inteira de títulos sobre super-heróis, a proporção de personagens femininas em seus gibis caiu de 12% para 1%. Mais de 4.500 fãs telefonaram à DC, pedindo que tomasse “medidas contra esses números terríveis, ofensivos, sob pena de continuar a ver suas vendas caírem”. A DC insiste que está levando a questão muito a sério e apontou para autoras como Nicola Scott, Felicia D. Henderson e Gail Simone. E chamou a atenção para personagens da DC como Mulher Maravilha, Batgirl, Mulher-Gato e Batwoman, reinventada como lésbica.
Apesar disso, blogueiras que escrevem sobre HQs, como Vanessa Gabriel, dizem que a DC e a Marvel – que, juntas, dominam o mercado – vêm demorando a reagir concretamente às preocupações de suas leitoras. Gabriel diz que a DC está se saindo melhor quando se trata de criar personagens femininas de destaque e que seu sofisticado selo Vertigo causou boa impressão, mas que “o sangue e a violência gratuita prevalecentes em muitos títulos da Marvel reduzem a abrangência de seu público”. Para ela, “essa é uma fórmula que pode ter funcionado bem para a Marvel e a DC no passado, mas está claro que não está funcionando mais”.
Leitoras crianças
Outra comentarista americana, Laura Hudson, vincula a escassez permanente de mulheres criadoras e tomadoras de decisões no setor das HQs ao fato de a maioria dos títulos para o mercado de massas “variar de gibis em que as mulheres são sexualizadas a gibis em que elas são fortemente sexualizadas de maneira ofensiva”. Hudson, que edita o site ComicsAlliance, diz que “desenhar mulheres com cinturinhas inviavelmente finas e seios imensos, em trajes reveladores, é a norma estética nas HQs sobre super-heróis, e, institucionalmente, é difícil romper com ela. Enquanto isso, as HQs independentes, incluindo os webcomics, têm uma proporção muito menos desigual entre criadores homens e mulheres. E, não por acaso, adotam uma abordagem muito mais balanceada e diversificada às mulheres.”
É também esse o caso dos graphic novels, cujo boom recente vem ajudando a atrair novos leitores, além de grandes livrarias. A artista e letrista Nichola Wilkinson, que faz parte da equipe responsável por Bayou Arcana, diz que pesquisas das quais ela participou no Reino Unido sugerem que as mulheres tendem a comprar suas graphic novels em grandes livrarias, como a Waterstones, e não nas lojas tradicionais de quadrinhos. “Está ocorrendo uma mudança no comportamento de compra e consumo, com a qual mais gibis são vendidos como coleções ou graphic novels extensos, em livrarias”, diz Wilkinson. “Com isso, foi aberta a porta para que editoras independentes menores produzam HQs cobrindo uma gama maior de temas.”
E as grandes editoras estão diversificando sua produção. Exemplos deste ano incluem Marzi: A Memoir, uma graphic novel da Vertigo, pertencente à DC. Escrita por Marwena Sowa, é o relato de sua infância e adolescência na Polônia dos anos 1980, mostrando Chernobyl e a queda do comunismo sob a ótica de uma criança. É algo que difere completamente das narrativas dos super-heróis tradicionais. Aclamado pela crítica, o livro vem tendo boa acolhida com os poloneses da Polônia e os que vivem fora do país. “Na semana passada, tive um encontro em Bruxelas com leitores, entre os quais muitos poloneses de minha geração. As garotas disseram que, desde que foram viver fora do país, não falam sobre como era sua vida na Polônia. Elas simplesmente compram um exemplar de Marzi e o dão para seus novos amigos, dizendo ‘era assim’.”
Sowa acrescenta: “Não existe separação entre HQs criados por homens ou mulheres. Mas, para mim, não é estranho que eu tenha leitoras e que muitas delas sejam crianças”.
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[Ben Quinn é repórter do Guardian. Tradução de Clara Allain]