Sempre que os meios de comunicação brasileiros resolvem abordar alcoolismo ou dependência química os personagens são os pobres, os negros, os desvalidos. Tecnicamente, eles são chamados de personagens nas reuniões de pauta Brasil afora. Funciona assim: um produtor, por percepção própria ou acesso a estatísticas, sugere uma pauta sobre acidentes que envolvem motociclistas. Daí a produção sugere fazer a famosa “ampla reportagem sobre o assunto”. Mas, para isso, é preciso encontrar os personagens para ilustrar a matéria; afinal, ninguém se interessaria por uma história com gráficos e nada mais.
Resolvida a grande reportagem, o jornalista é chamado e orientado sobre o assunto ainda na redação. Ele acaba se empolgando; afinal, todo jornalista que se preze acredita que está falando algo que nunca foi dito ou, se foi, vai tratar aspectos do tema que jamais foram abordados. É o furo de reportagem a caminho. E lá vai a equipe para a rua. Os motociclistas pobres embriagados são os alvos, opa, o tema da matéria. “Quantas cervejas você tomou?”, pergunta o repórter. “Trinta e oito até agora, senhor.” “Você vai para casa de moto?”, pergunta de novo o jornalista, pasme, para o motoqueiro. “Sim senhor. E vou bem, com a ajuda de Deus.”
O ideal seria o rapaz responder: não senhor, meu Ford Fusion está vindo. Acabei de telefonar para meu motorista particular, o Jarbas. Ele foi comprar caviar antes de vir para cá porque daqui vou dar uma festa para meus amigos motoqueiros que trabalham nos canaviais do Nordeste. Tudo a bordo do meu iate, afinal também trabalho cortando e colhendo cana na mão. Ganho uma fortuna de R$ 70,00 por semana para trabalhar do nascer ao por-do-sol. Lucro por tonelada abatida no braço. Aqui não tem essa de trator, como nos canaviais em São Paulo. É tudo feito como nos tempos da escravidão. Já os motociclistas – com suas motos de mais de mil cilindradas que voam a 200 Km/h nas rodovias Castello Branco, Marechal Rondon, em São Paulo, e na Via Dutra – estão fora da reportagem.
Imprensa míope
Com as drogas é sempre a mesma coisa. Os personagens são os mendigos da cracolândia, uma espécie de lugar esquecido por Deus no centro de São Paulo. O fato é que a cracolândia não surgiu do nada. Não brotou da calçada como uma margarida no musgo entre paralelepípedos. Tudo que não presta e ganha espaço é porque o Estado não chegou ali. Favelas, miséria, abandono, violência doméstica, tráfico, falta de saneamento básico e educação, energia, insegurança, doenças, epidemias, enfim, essas deformidades só vicejam pela omissão do poder público.
Mas os meios de comunicação no Brasil ainda não tiveram coragem de bisbilhotar os alcoólatras das classes A e B. Principalmente os da classe A. Festas nas quais a cocaína é servida em bandeja nunca foram filmadas. Orgias de celebridades caindo pelas tabelas de tanto uísque 21 anos também não são temas dos furos de reportagens nas televisões, jornais ou revistas.
Essa turminha, mais discreta e capitalizada, tem seus próprios matadouros, casas de luxo alugadas para beber, fumar e cheirar à vontade, sempre servidos por belas prostitutas longe dos holofotes da mídia. E quando raramente a história vem a público, o caseiro que denunciou é mandado embora e sua vida se transforma em um inferno. Da mesma forma, o figurão que chega em casa bêbado ou drogado e espanca a esposa também não vai parar na mídia. O filhinho de papai que capota o carro e mata a namorada também sai ileso. É preservado pela imprensa pequeno-burguesa. Ainda mais se for uma celebridade, como um ex-jogador de futebol, um animal que causou a morte de várias pessoas em um acidente de carro. No lugar de ir para a cadeia virou comentarista de futebol. Está tudo certo para os animais do trânsito no Brasil da hipocrisia. Ele livre feito um pássaro, as vítimas mortas feito cadáveres.
A imprensa brasileira é míope em muitos casos. Logo ela, que clama diariamente por democracia e justiça social.
É muita hipocrisia.
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[Paulo Renato Coelho Netto é jornalista e pós-graduado em marketing]