Há cinco anos empolguei-me com um romance de estreia, Then We Came to the End, de Joshua Ferris, que na tradução da Nova Fronteira virou E Nós Chegamos ao Fim. Ambientado numa agência de publicidade de Chicago, era um Mad Men atualizado ao revertério econômico da época, com situações e diálogos de alta voltagem cômica. Nos primeiros meses de 2010, outro estreante, Tom Rachman, me encheu os olhos com um romance mais ou menos na mesma linha. A vítima da crise, daquela vez, era o jornalismo impresso afrontado pelas novas tecnologias e autodestruído por gestores insensíveis e incompetentes.
Recém-lançado pela Record, Os Imperfeccionistas (tradução de Flavia Anderson, 377 págs., R$42,90) é uma inteligente e divertida elegia da imprensa analógica. E talvez o mais esperto retrato do rat race jornalístico desde que Ben Hecht e Charles MacArthur inventaram a dupla Hildy Johnson-Walter Burns, na comédia The Front Page, já lá se vão 85 anos. Rachman, como Ferris, conhece a fundo o milieu de seu romance, pois antes de se realizar como escritor frequentou, a exemplo de Ben Hecht, um punhado de redações. Trabalhou no International Herald Tribune, em Paris, e para a AP, no Egito e Japão.
Paradigma de um tipo de repórter afoito e ladino, Hildy Johnson até já emprestou seu nome a um importante prêmio para jornalistas furões em Chicago. Quem sabe, um dia, não será instituído um galardão similar com o nome de Herman Cohen. Ele bem que merece a deferência. Dos imperfeccionistas criados por Rachman, é o único à altura de uma homenagem do gênero.
O ilusório charme do jornalismo
Ao apresentá-lo como “chefe de redação”, a tradutora da Record no mínimo desidratou uma piada: no original, Cohen é identificado como corrections editor, cargo que não existe nominalmente, embora corrigir os cochilos da redação seja o que de fato ele faz no jornal em torno do qual giram todos os 11 capítulos do livro. E com que verve ele atua! Volumoso e glutão, é o terror de repórteres, colunistas e editores, cujos erros de ortografia (“Estrados Unidos”, “Satã Hussein”), informação (Tony Blair incluído numa lista de “dignatários japoneses recém-falecidos”), solecismos, clichês e vícios de linguagem não só patrulha obsessivamente como expõe ao ridículo num mural de cortiça.
Todos nós, jornalistas, já convivemos com semelhante figura, rigorosamente presa a regras gramaticais, fiscal e penhor da qualidade dos textos, sem a qual a “credibilidade” do jornal, para usar uma de suas expressões favoritas, vai pro brejo. Como é típico da espécie, Herman faz cerrada campanha contra vocábulos um tanto desmoralizados pelo uso abusivo. “Literalmente”, por exemplo. Porque “muitas vezes, ações descritas dessa forma nunca chegaram a acontecer”, argumenta, pinçando de uma reportagem esta pérola: “Ele morreu de susto, literalmente”. Se tal fato tivesse ocorrido, comenta, “eu sugeriria promover a matéria à primeira página”. Herman é meu personagem favorito, confesso, literalmente cônscio de que posso estar cometendo uma injustiça com alguns de seus colegas de redação, e sobretudo provocando a debochada impaciência do corrections editor.
Arthur Gopal e Winston Cheung disputam no photochart a segunda colocação. Arthur é um talento desperdiçado (ou desmotivado) pela direção do jornal, que o condenou ao mofo da seção de obituários, da qual escapa depois de entrevistar, em Genebra, uma renomada feminista austríaca com o pé na cova. Winston é um ingênuo sino-americano que se deu mal ao trocar a primatologia pelo ilusório charme do jornalismo, que lhe parecia “uma profissão de macho alfa”. Mesmo sem dominar o árabe, disputa a vaga de freelancer no Cairo com um experiente picareta, Rich Snyder, que o põe no bolso, ao cabo de peripécias que ora evocam o Hunter S. Thompson de Fear and Loathing in Las Vegas, ora os desatinos africanos de William Boot em Furo!, de Evelyn Waugh.
Correspondente patético
Jamais identificado pelo nome, o jornal é um diário de língua inglesa editado em Roma desde 1953, com 12 páginas e tiragem pouco superior a 15 mil exemplares. Só na página 356 ficamos sabendo por que o excêntrico milionário de Atlanta Cyrus Ott, cujo império empresarial brotou de uma refinaria de açúcar falida, entregou-se ao capricho de montar no corso Vittorio Emanuele II um veículo para circular apenas na Europa, no Magrebe e no Extremo Oriente.
Acompanhamos as seis décadas em que o jornal conseguiu se aguentar de pé indo e voltando no tempo, dos anos 1950 ao segundo governo Bush, cruzando de um personagem a outro, cada um deles introduzido na abertura de um capítulo, sempre encimado por uma manchete (“Aquecimento global é bom para sorvete”, a melhor de todas). Constantemente golpeado por cortes de verbas e pessoal que comprometem sua qualidade, mas jamais o livram do patíbulo, ele afinal sucumbe à concorrência de outras mídias, ao seu suicida desdém pela internet e à calamitosa gestão do último herdeiro do clã Ott, Oliver, jovem meio retardado que só a um basset hound chamado Schopenhauer costuma dar atenção.
Rachman nega ter escrito o epitáfio do jornalismo, que prefere ver como uma profissão em transição, não em via de extinção. Mais de um crítico considerou Os Imperfeccionistas uma sátira afetuosa à imprensa que consome papel e tinta e nos últimos tempos passou a ser a última a dar as primeiras. Por isso, o quarto personagem mais interessante do livro é o protagonista do primeiro capítulo, Lloyd Burko, um patético correspondente em Paris que ainda usa fax. Mais que um personagem, uma metáfora.
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[Sergio Augusto é jornalista, escritor e colunista do Estado de S.Paulo]