A polêmica em torno da republicação ou não de Minha Luta na Alemanha é interessante (ver aqui). Mas a polêmica fica mais interessante se compararmos a obsessão pela obra de Hitler ao pouco interesse dispensado, por exemplo, ao Tratado Teológico Político, de Baruch Spinoza.
O livro de Spinoza foi proibido pelas autoridades eclesiásticas por ousar discutir as escrituras sagradas e os fundamentos do poder político da monarquia hereditária. O livro de Hitler tem sido banido por autoridades laicas por incentivar o ódio racial, ser antissemita e defender o autoritarismo. Ambos os autores foram acusados de antissemitismo, mas apenas o livro de Hitler é abertamente antissemita. Spinoza foi banido pelos judeus unicamente porque eles sentiram medo da reação católica às discussões propostas e realizadas pelo filósofo.
A obra de Spinoza causou o banimento do autor, mas tem sido republicada e estudada. Trata-se de um estudo profundo e valioso que nos ajuda a entender o judaísmo e as ideias políticas do autor, bem como o contexto autoritário que ele criticou. Em 2003, Marilena Chauí publicou Política em Spinoza e avançou decisivamente no estudo tanto da forma como do conteúdo do discurso:
“No que concerne à forma do TTP, há um capítulo dedicado exclusivamente a ela e a sua novidade é patente. Não apenas indica que há linhas argumentativas diversas que se entrecruzam no texto, algumas linhas características de livros hieróglifos e outras características de livros inteligíveis, mas ensina como interpretá-las. No caso das linhas inteligíveis, fundam-se em definições e a teoria política no capítulo 16 de Spinoza não é senão a construção de uma definição. Em outras palavras, assim como os seis primeiros capítulos constroem a definição real do objeto ‘religião revelado’, o capítulo XVI constrói a definição real do objeto imperium; e, assim como o primeiro objeto conduziu à necessidade do método exegético, o segundo conduzirá à dedução puramente racional dos fundamentos do poder político” (Chauí 4, P.32).
Definição real
Cabe observar, na citação acima, que a dedução do poder político é racional, ou seja, fundamentada numa definição real. Isto quanto à forma, não ao conteúdo do discurso. Pois do ponto de vista do conteúdo somente a passionalidade dos homens explica a gênese da política. Do ponto de vista da forma, o texto do capítulo 16 é uma dedução racional a partir de uma definição. Ora, há geométrica política nesta dedução e, caso a resposta seja afirmativa, como ela se articula com a experiência consignada pelos historiadores romanos e hebreus? Aprofundemos esta questão.
O Tratado Teológico-Político apresenta, em seus cinco capítulos finais, um discurso voltadopara a política. Nos quinze capítulos iniciais, o discurso se volta para temas teológicos, filológicos ou de exegese das Escrituras e para a questão da distinção entre a teologia e a filosofia. A apresentação, no capítulo 16, de um tratamento filosófico da política sucede à distinção entre a teologia e a filosofia, distinção operada no capítulo anterior, o décimo quinto.
O capítulo 16 tem o seguinte título: “Dos fundamentos da república; do direito natural dos indivíduos e do direito dos poderes soberanos [summarum potestatum]”. Construção da definição real do objeto imperium, como vimos acima na passagem de Marilena Chauí, constitui a condição para a exegese dos capítulos seguintes.
Encontrados na internet
Com efeito, nos capítulos 17 e 18, Spinoza examina, à luz da definição construída no capítulo 16, exemplos da história dos romanos, sobretudo nos Anais e nas Histórias de Tácito, e da história dos hebreus, sobretudo nas Sagradas Escrituras e nas Antiguidades Judaicas, de Josefo.
“Do ponto de vista do conteúdo, a história dos romanos e dos hebreus mostra que a forma monárquica enfraquece o corpo político e deixa-o vulnerável: a concentração de poderes nas mãos de Augusto, no caso dos romanos, preparando a ruína futura, bem como a transformação do regime descentrado dos juízes em regime de concentração nas mãos dos reis, no primeiro imperium dos hebreus, que foi devastado justamente sob o domínio dos monarcas. A experiência ensina que a concentração de poderes que caracteriza a monarquia é a fraqueza que prepara a destruição do corpo político. A história dos romanos e a história dos hebreus, assim, são dados da experiência que podem testemunhar contra a monarquia e em favor da democracia. A tese de que a concentração de poderes no monarca enfraquece o corpo político e prepara a sua destruição surge no exame da história dos hebreus e dos romanos, ou seja, a experiência consignada nos registros historiográficos é que o mostra” http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos/ARTIGOS/numero%2019/andre19.pdf.
A relevância da republicação da obra de Hitler é discutível. De fato, sabemos que Minha Luta é uma obra superficial, difunde ideias raciais cientificamente superadas e faz a apologia do autoritarismo, regime político que provoca exclusão, guerra, dor, destruição e morte em massa. Apesar de seus defeitos evidentes, Minha Luta segue sendo objeto de atenção. As virtudes do Tratado Teológico-Político continuam conhecidas de uma plateia minúscula. Em português, o livro de Spinoza tem apenas 206 mil referências no Google. Menos que a metade das 468 mil referências em português para o livro de Hitler.
A discrepância é ainda maior se levarmos em conta os títulos originais das obras. Mein Kanpf (título da obra de Hitler) tem 7,99 milhões de referências no Google, enquanto o Tractatus Theologico-Politicus (título da obra de Spinoza) tem 476 mil referência no Google. Ambos os livros podem ser encontrados na íntegra na internet. Tenho um exemplar do livro de Spinoza em casa; o de Hitler não compraria (mas confesso que adquiri uma obra que estuda a história deste livro macabro).
Antídoto contra o nazismo
Porque o livro de Hitler é mais desejado, lido e comentado que o de Spinoza? Não sei a resposta. Mas gosto de pensar que uma boa explicação pode ser dada se levarmos em conta o elemento mais profundo de cada obra: a irracionalidade de Hitler e a racionalidade de Spinoza. A frustração de Hitler (que era social, econômica e, dizem, sexual) levou-o a reagir de maneira irracional. A frustração de Spinoza (apenas intelectual) o levou a querer aprender, discutir, entender. Ambos queriam um outro mundo, mas Spinoza nunca fez a apologia da violência. Hitler sempre considerou que a violência era a chave da história e da transformação do mundo.
A violência irracional é um componente da natureza humana, mas pode ser controlada ou disciplinada através da cultura. A destruição da cultura, metodicamente levada a efeito pelos nazistas com base na plataforma política de Hitler, libertou a violência irracional humana e produziu o resultado que conhecemos (e que ainda hoje é sentido). Ora, é mais fácil destruir que construir, é mais simples ser capturado pela frustração do que libertar-se dela. Isto explica satisfatoriamente, pelo menos para mim, o maior interesse pela obra de Hitler do que pela de Spinoza.
O que deve fazer um Estado laico diante destas duas obras? Permitir a republicação da obra de Hitler equivale a plantar as sementes de destruição da liberdade de consciência e de expressão. A censura feroz, por outro lado, instiga o desejo de ler o livro. Além disto, os meios técnicos para a difusão e consulta virtual da obra estão à disposição de todos (os resultados do Google aí estão a demonstrar o interesse mórbido despertado pelo clássico nazista). O Estado não pode e não deve bloquear totalmente a difusão do livro de Hitler na internet, mas pode fazer algo para minimizar seus efeitos deletérios no mundo real. O incentivo à divulgação, estudo e discussão da obra de Spinoza pode ser um excelente antídoto contra as ideias nazistas. De fato, o filósofo penetrou fundo nas raízes do autoritarismo e nos deixou uma obra digna de ser lida, comentada e divulgada por qualquer defensor da democracia e da tolerância.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]