Vera Lúcia Bogéa Borges já nos havia dado, em 2004, o ótimo livro Morte na República, os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica, 1909-1915. Agora nos dá este outro, A Batalha eleitoral de 1910, imprensa e cultura política na Primeira República. Ambos os livros tematizaram aspectos da chamada Campanha Civilista. O primeiro tratou das urdiduras políticas e do assassinato do senador Pinheiro Machado. Neste segundo livro, o objeto principal é a imprensa, o meio pelo qual as paixões da Campanha se acenderam, estudo muito relevante, pois dá azo a compreender problemas que persistem, não obstante os esforços da historiografia.
A célebre campanha de Rui Barbosa constituiu-se, efetivamente, num episódio memorável de embate de ideias, quebrando o marasmo das eleições presidenciais, cujos resultados já se sabiam antecipadamente, por causa do acordo “café com leite”, apoiado pelas oligarquias provincianas, subalternas às de Minas Gerais e São Paulo. A imprensa haveria de cumprir um papel essencial na crítica àquele estado de coisas.
Mudanças rápidas atingiam a imprensa nos anos da belle époque. As notícias chegavam com celeridade, graças às conquistas da civilização: telégrafo, cabo submarino, telefone. Eletrificavam-se os parques gráficos e as oficinas, trazendo conforto e agilidade às redações. A impressão a cores difundia-se e barateava; as fotografias tornavam-se cada vez mais comuns. Os veículos motorizados substituíam o transporte animal, melhorando a distribuição, o mesmo que as ferrovias, com jornaleiros viajantes a vender jornais e revistas nos lugarejos; e os correios, aos assinantes interioranos. Os repórteres dos novos tempos recorriam cada vez mais à datilografia e à fotografia.
A paixão “pelas folhas”
Passadas duas décadas da proclamação da República, a imprensa procurava representar os interesses que lhe permitisse pleitear mais subsídio ou patrocínio publicitário. Parte dos jornais da capital federal, por exemplo, defendia os interesses portugueses, isso porque, no tempo de Floriano, os comerciantes lusos viram-se prejudicados pelo governo. Estes homens de negócio procuravam defender os seus interesses por meio dos veículos de circulação permanente, tendo quem lhes defendesse – jornalistas importantes, como João do Rio. Da mesma forma, na capital federal, líderes nacionais, facções, homens de negócios, brasileiros ou estrangeiros, com recursos privados ou públicos, procuravam emitir seus pontos de vista e influenciar leitores e autoridades.
O crescimento demográfico, a industrialização incipiente e o crescimento econômico ascendente possibilitavam expandir a publicidade, pois a venda dos diários não permitia, por si só, a sobrevivência dos jornais. Os grandes debates nacionais apaixonavam as redações. Perto do início da Primeira Guerra Mundial já estava bastante difundido o “colunismo”, multiplicando-se as especialidades As entrevistas ainda não eram muito comuns nessa época, e mesmo em 1926, como diria Mario Nunes, colunista de teatro e um dos poucos a praticar a interview, ao entrevistar Benedetta Marinetti.
Pode-se dizer que as eleições eram o máximo a explorar, mobilizando editorialistas, repórteres, colunistas e um verdadeiro exército de colaboradores. Os diários não se bastavam com as matérias próprias, e estampavam também os “a pedidos”, as cartas de leitores, os manifestos, os esclarecimentos, os protestos de correligionários, as charges etc. A Campanha Civilista excedeu às demais eleições presidenciais em excitação, até a de 1930. Nos anos 1920, no Para Todos, Álvaro Moreira lembrou-se do duro embate de Carlos de Laet e Gil Vidal, dos ataques mútuos do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã, quando revelou que se formara advogado em 1910, mas que deixara as leis pelas redações, tomado de paixão “pelas folhas”.
Política externa e expansão naval
Os motivos de tanta exacerbação não foram poucos: para os civilistas a questão em jogo era a natureza da república brasileira, que servia à oligarquia interesseira e aliada a especuladores sem escrúpulos. A candidatura Hermes representava a autoridade discricionária, os acordos de gabinete, a ameaça de golpe, a mentalidade militar tacanha, a falta de imaginação e a incompetência. E era cercado pelos mais espúrios elementos da política nacional, que mantinham azeitada a máquina do reconhecimento eleitoral, a decepar cabeças inconvenientemente eleitas. Os defensores de Hermes afirmavam que sua candidatura garantia a ordem, o predomínio da autoridade central sobre os atrasados “coronéis” das periferias, o freio à dispersão do federalismo exagerado. Para alguns, tanto no meio civil como no militar, Hermes revivia a aproximação com o povo, que havia existido sob Floriano, durante a Revolta da Esquadra, como ideal positivista de ordem e progresso, tal como difundido nos quartéis no fim do Império, antídoto à indiferença da classe agro-exportadora à questão social.
A candidatura Rui representava, para os seguidores, o respeito às leis e ao funcionamento regular das instituições, a renúncia à força e ao arbítrio, a civilização dos costumes, a prevalência da educação e da cultura, a moralidade pública. Tratava-se de uma candidatura “de direito”, a do homem de grande estatura intelectual e moral, a “Águia de Haia”. Os adversários diziam de Rui que ele representava o predomínio do formal e do ideal sobre as coisas práticas, do jurisdicismo e do leguleio sobre a objetividade administrativa. Rui não teria força para debelar as crises, nem inspirava autoridade. Tal acirramento ocorreu, pode-se dizer, primeiramente porque, naquele instante, havia mesmo uma real possibilidade de vitória da oposição, ao contrário das eleições presidenciais anteriores.
Além disso, 1908 transcorreu agitado. Surgiu a Confederação Operária Brasileira, controlada pelos aguerridos anarquistas que, em maio, impuseram uma greve geral à companhia de fornecimento de gás, deixando a capital federal às escuras por cinco dias. Outra complicação foi a dos atos “militaristas”: a reforma militar, o rearmamento e a lei de recrutamento, com obstinada oposição de Rui Barbosa no senado.
Naquele momento, “militarismo” expressava a condução dos negócios públicos conforme a ótica da defesa nacional, como cultura política conjuntural, vindo do belicismo alemão, nas últimas décadas do século 19, e da entente cordiale, firmada em contrário, por França e Inglaterra, em 1904. Em consonância, no Brasil, na pasta da Guerra, o marechal Hermes procurou rearmar o Brasil, alinhando-se com a política externa do barão do Rio Branco e com a expansão naval comandada pelo almirante Alexandrino de Alencar.
“Rui Barbosa ou a revolução”
“Militarista” significava também a forma como se instituiu a república no Brasil, por meio de um golpe militar, imposto à monarquia. “Militarista” teria sido o governo de Floriano, amplamente contestado, pela supremacia das armas na política, duro repressor de insurretos e opositores, às custas de prisões, execuções e exílios, tendo sido o próprio Rui Barbosa obrigado a exilar-se, como vítima do “militarismo” do Marechal de Ferro.
Rui Barbosa foi eminente jornalista. Disse certa vez: “Duas profissões tenho amado sobre todas – a imprensa e a advocacia. Numa e noutra me votei sempre à liberdade e ao direito”. Mas os colegas dos jornais não o pouparam. Carlos de Laet, no Jornal do Brasil – que Rui Barbosa ajudara a fundar, em 1893 –, o acusou de ter “traído” a monarquia na última hora, que foi o responsável pela “desastrosa” política econômica no “Encilhamento”, e que advogava contra os interesses nacionais.
Pela primeira vez na história das campanhas presidenciais, a participação popular foi relevante. Nas fotografias estampadas nos diários vemos multidões espremendo-se nas praças públicas, nos meetings, nas estações ferroviárias e diante dos prédios dos jornais, durante a apuração. Aquela era uma hora de decisão, como bem expressou um panfleto do deputado Otávio Mangabeira, em nome dos “republicanos de verdade e dispostos a agir, (…) Rui Barbosa ou a revolução”. Apesar disso, apenas 1,7% da população participou das eleições.
Ponderação e equilíbrio
De Santa Catarina, na derrota, queixou-se amargamente Hercílio Luz: triunfara o caudilhismo, “um eclipse da civilização, mediocridade e sem escrúpulos dos que apoiam a candidatura militar. Os Castros se sucederão, os motins dos quartéis serão contínuos, a iniquidade, a falência da lei… efervescência revolucionária das infelizes repúblicas hispano-americanas… incompetência … Por isso queria a revolução rápida e preventiva”. Mas a revolução não veio e o governo de Hermes da Fonseca foi, mais ou menos, o que previu Hercílio Luz, um rol de intervenções militares nos estados, um promotor de derrubadas de oligarcas, que logo voltavam a se assentar mais oligárquicos que nunca. A sociedade brasileira, derrotada, teria de aguardar por duas décadas pela campanha eleitoral de Vargas, tão igualmente empolgante, porém menos generosa e liberal que a Civilista.
Em 2009, às vésperas do centenário da Campanha Civilista, Vera Lúcia Bogéa Borges, defendeu sua brilhante tese de doutorado, celebrando, assim, a passagem histórica memorável, em que fala dos projetos, grandezas e misérias da república brasileira. Os leitores deste livro estimulante encontrarão ponderação e equilíbrio, constante transferência de voz dada aos personagens da época (com ótimas transcrições de falas), e também muitas charges, ilustrações e fotografias, que tanto enriquecem a exaustiva e bem documentada obra, ajudando o leitor a ter uma compreensão abrangente e aprofundada da campanha.
***
[Orlando de Barros é doutor em História Social, pós-doutorado pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro]