Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Muitas hipóteses e uma visão apocalíptica

Sempre que uma nova tecnologia de comunicação aparece, há os que reagem com uma atitude de deslumbramento e os que ficam horrorizados, por achar que tudo que havia de bom no ambiente cultural corre o risco de desaparecer.

É a célebre dicotomia entre apocalípticos e integrados, conforme a definiu Umberto Eco em seu clássico ensaio de 1964, que levava esse nome e que dava sequência ao debate engendrado a partir das considerações da Escola de Frankfurt sobre o rádio vis-à-vis a música erudita em salões (e outros artefatos da cultura de massa diante da cultura tradicional).

O impacto da internet sobre a vida das pessoas a partir da década de 1990 tem tido tamanha repercussão (comparável apenas à que teve a imprensa de Gutenberg no século XV, só que esta foi muito mais lenta e durante bastante tempo menos universal), que seria impossível não gerar um debate ainda mais apaixonado entre seus admiradores e detratores do que todos os motivados pelos predecessores (telégrafo, rádio, cinema, TV e outros).

Novo estilo

Como nos casos anteriores, mas com intensidade mais aguda do que nunca, os dois campos em oposição produzem muitas bobagens e raros produtos de boa reflexão que de fato ajudam a compreender o fenômeno, extremamente complexo e ainda em processo de transformação e longe da sedimentação (se é que ela venha a ocorrer um dia).

Nicholas Carr é um jornalista de 59 anos, esperto e inteligente, que se alinha entre os apocalípticos, mas costuma escrever com discernimento sobre o cibermundo e suas variantes e derivadas.

Ficou famoso especialmente com um artigo publicado em 2008 pela revista The Atlantic com um título primorosamente chamativo: “O Google está nos tornando estúpidos?” Apesar do ponto de interrogação, a frase tinha um claro sentido afirmativo.

Tem-se agora a edição brasileira do trabalho mais elaborado de Carr: A Geração Superficial: O que a Internet Está Fazendo com Nossos Cérebros, enunciado muito menos provocativo do que o do artigo que lançou o autor ao estrelato, mas que prenuncia um conteúdo muitíssimo ambicioso, que – provavelmente todos sabem disso – não pode ainda ser produzido com credibilidade reconhecível.

Simplesmente, ainda não há pesquisa empírica acumulada suficiente para se afirmar com segurança o que a internet está fazendo com nossos cérebros. Há intuições provenientes da observação pelo senso comum, alteráveis pelo viés mais ou menos favorável de um e de outro em relação às novas tecnologias. É basicamente nelas que Carr se baseia no livro para chegar a suas conclusões.

Por exemplo: é claro que o modo predominante de ler no século XXI (nas telas de computador) é muito mais fragmentado do que a maneira como a maioria absoluta das pessoas leu até 1990 (em papel impresso). Daí decorre a possibilidade de que esse novo estilo de apreender informações modifique a forma como o conhecimento se constrói, talvez de um modo menos linear do que o anterior. Mas isso dificilmente se pode comprovar.

Leitura prazerosa

É verdade que existe um pequeno estoque de trabalhos científicos, em especial na área da neurociência, no qual o autor se abastece seletivamente para corroborar suas impressões. Mas ele não só é inconclusivo por ainda não ter atingido massa crítica capaz de convencer a comunidade acadêmica (ou pelo menos parcela expressiva dela), como por serem os resultados frequentemente contraditórios entre si.

É claro que Carr, embora prudentemente relativize muitas de suas afirmações, para não cair em descrédito, passa por cima das muitas evidências de que elas são parciais, incompletas e sujeitas a revisão pelos fatos.

Por exemplo, uma de suas hipóteses centrais é de que o universo da internet vai provavelmente matar os livros. No entanto, este livro foi escrito antes do enorme sucesso que os e-books vêm fazendo. Se os livros digitais são realmente lidos depois de comprados, se são lidos inteiros ou apenas em trechos, se a sua compreensão é maior ou menor do que a de quem lê a versão impressa, se continuarão a ser um sucesso de vendas, todas essas são questões abertas (como tantas outras). Mas, sem dúvida, pelo menos por enquanto, a internet não matou os livros e, até ao contrário, vem incentivando sua disseminação comercial.

Apesar das muitas restrições que se possam fazer ao tom às vezes peremptório com que Carr afirma suas teses, este é um livro que deve ser lido por todos, apocalípticos, integrados e neutros em relação à cultura “virtual”.

Todos que acompanharem a argumentação de Carr sem preconceitos serão forçados a colocar em dúvida muitas de suas convicções sobre o assunto, e não há nada melhor para chegar a conclusões sólidas e confiáveis sobre qualquer questão do que colocar em xeque as convicções anteriores, nem que seja para, no final do processo, reforçá-las.

Além disso, Carr tem um enorme repertório cultural, que lhe permite fazer conexões às vezes divertidas, outras inesperadas, que tornam a leitura de seu texto muito prazerosa.

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[Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente e doutor em comunicação pela USP, mestre em comunicação pela Michigan State University e editor da revista Política Externa]