Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O bom da Folha de S.Paulo

Mark Twain reclamou um dia, numa coletiva de imprensa, da manchete da sua morte estampada nos jornais: “Senhores, as suas notícias sobre a minha morte são exageradas”. Notem que ele fez essa queixa plena 13 anos antes do seu final e definitivo óbito. Que diferença para a brava e prudente Folha de S.Paulo. Ela, a sensata do Brasil, jamais se antecipa ao falecimento de qualquer personagem vivo. Não, pelo contrário. A Folha jamais se antecipa até mesmo à morte das pessoas mais mortas. Ainda que torça pelo falecimento de alguns, como os sentidos e já prontos obituários do ex-presidente Lula, a Folha não exagera nas notícias de antecipação da morte de ninguém. Minto. Houve uma vez, com a morte de Romeu Tuma, dias antes, na Folha.com. Mas no jornal impresso, jamais.

O bom da Folha, no seu obituário, é que a gente sempre morre depois. Muito depois.

Se o leitor, um dia ou outro, olhar a página de falecimentos, descobrirá entre outras coisas que os mortos são sempre pessoas bondosas, angelicais ou magníficas, embora disso jamais o mundo tenha sabido. Mas isso é do gênero dos obituários, poderia ser observado. Todo homem que morre é generoso, piedoso e bom para a humanidade dos seus iguais, ainda que se chame Augusto Pinochet ou Margaret Thatcher, que o santo e bom diabo os carregue.

Mas o que foge da regra geral, na Folha, é não só a uniformidade ética dos falecidos pegos no ar, parece, no imponderável e no, quem sabe, talvez um dia tenha sido um bom camarada. O bom da Folha é que a gente morre atrasado. A essa imortalidade provisória, todo santo homem tem direito ali. Na falta de um ilustre defunto, as pessoas do povo, em especial, recebem um futuro semanal.

Na edição de sexta-feira (17/2) da Folha, por exemplo, dizia-se de Firmo Geraldo Aguiar:

“Motorista apaixonado por guiar”

“O único que tinha carro em Panelas (PE) era o padre Firmo Geraldo da Silva, vidrado em automóveis desde cedo, ofereceu-se para lavá-lo e, em troca, guiá-lo um pouco. Como muitos jovens tiveram a mesma ideia, um dia o veículo acabou dentro do córrego.

“Por volta dos 17, Firmo foi para Recife tirar habilitação. Dizia que a prova, anual, era como um vestibular. Aprovado, trabalhou como motorista de caminhão e chofer numa usina em Alagoas. Quando adquiriu experiência, decidiu migrar para o Sudeste atrás de melhores condições. Em Santos, dirigiu ônibus municipal. Contava que sempre levava o jogador Pepe até os treinos do Santos. Também fez linhas intermunicipais para São Paulo e Campinas antes de começar na refinaria Presidente Bernardes, da Petrobras, em Cubatão. Lá, ficou 26 anos.

“Nos anos 50, casou-se com a sergipana Lourdes, que conheceu em Cubatão e a quem sempre chamava de ‘guria’. Depois de sair da refinaria, teve caminhão e foi sócio de uma distribuidora da Antarctica em Santo Anastácio (SP). O filho Maurício, geólogo, conta que, devido à profissão, o pai acabou conhecendo todas as capitais do Brasil. Nos últimos 25 anos, porém, decidiu se estabelecer em Itu, no interior paulista, onde se tornou taxista. Ficou conhecido no ponto da praça principal da cidade. Trabalhou até seis meses atrás. Problemas na visão afastaram-no dos jornais que gostava de ler e do volante.

“Tinha um enfisema (quando jovem, fumou muito). Morreu na sexta, aos 81 anos, de problemas pulmonares. Teve três filhos e quatro netos.”

Na Folha do sábado (18/02/2012), assim se noticiou a morte de Orlando Galdino:

“Chocolate, 42 anos como taxista”

“À noite, enquanto Orlando Galdino rodava pelas ruas de São Paulo com seu táxi, a família mal dormia de preocupação, apesar de nada de muito grave ter-lhe acontecido em 42 anos de profissão. O maior susto pelo qual passou, contava, foi quando um homem armado o abordou. Por inexperiência no crime ou nervosismo, o assaltante deixou cair o revólver. Orlando, em vez de fugir, devolveu a arma ao dono, que, envergonhado, desistiu de ir adiante com seus planos.

“Chocolate, como era chamado pelos colegas de trabalho, nasceu na capital paulista. Era filho de uma dona de casa e de um segurança, que, segundo a família, trabalhou para Chiquinho Scarpa. Antes de ser motorista, foi funcionário da Coca-Cola, na linha de produção. Mas não deu muito certo no serviço, por ser muito brincalhão e alegre, afirma a família. ‘Dava prejuízo para a empresa’, brinca a filha Ana Paula. Encontrou-se como taxista, profissão que amava e na qual podia conversar bastante. Dizia ter levado muitos famosos em seu carro, como Joana Machado, vencedora do programa de TV A Fazenda, Adriane Galisteu e Raul Gil.

“Com dez filhos para criar (nove mulheres), nunca tirava férias. Ultimamente, trabalhava em eventos, à noite, por achar mais tranquilo. Adorava dançar, o que fez até os últimos anos – a mulher, a dona de casa Vanda, ele conheceu num baile. Era fã do grupo Raça Negra. Nos últimos dias, doente, dizia que queria melhorar logo para voltar a guiar seu Meriva. Sofreu uma trombose. Morreu no sábado (11/02), aos 74, após parada cardíaca.”

Mas observem um caso exemplar, o de Dona Mocinha, irmã de Lampião, que morreu uma semana depois, como de hábito, no óbito da Folha de S.Paulo. Será o jornal um hebdomadário, um dromedário ou um gigante sáurio? Notem que para um obituário hebdomadário, a Folha, com tanto tempo para noticiar a morte, e dada a importância histórica da falecida, quando nada, por ela, dona Mocinha, haver vivido mais de 100 anos, o obituarista hebdomático não pesquisou bem a vida de dona Mocinha e do mais famoso irmão. Aos fatos, estripados da cabra da pesteuma semana depois.

“A última irmã viva de Lampião”

“Maria Ferreira Queiroz (1906-2012)

“Maria Ferreira Queiroz ou tinha 28 ou 32 anos quando a cabeça do irmão, morto pela polícia, foi exposta ao público no Nordeste. Nunca se soube com certeza a idade dela, apelidada de dona Mocinha. No RG expedido em 1991 consta que nasceu em 1906, em Pernambuco. Mas sempre afirmou possuir outro documento em que aparece 1910. Controversa também, entre os historiadores, é a data de nascimento do irmão que a tornou famosa. Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, veio ao mundo entre 1893 e 1905. É certo que morreu numa emboscada em 1938, depois de 20 anos fugindo das polícias nordestinas.

“Dona Mocinha, que não participou do cangaço, morou em Delmiro Gouveia (AL), onde o marido, Pedro Raimundo Queiroz, trabalhava como vigia numa fábrica de tecidos. Segundo os familiares, ela costurava para fora. Veio para São Paulo, onde já tinha uma filha, mais de 40 anos atrás, após ficar viúva. Teve sete filhos, sendo que apenas dois estão vivos. Trouxe consigo um neto órfão de mãe que ela criou. No começo, não gostava muito da capital paulista e tinha o sonho de fazer o caminho de volta. Com o tempo, porém, acostumou-se. Viveu na Vila Guilherme e no Jardim São Paulo, na zona norte.

“Quando foi descoberta por pesquisadores, passou a ser procurada para contar o que lembrava do passado, o que não se incomodava em fazer.

“Teve problemas cardíacos e já não andava mais, conta a família. Na sexta, acordou sentindo-se mal e foi levada ao hospital, onde morreu aos 106 (ou 102). Foi enterrada no cemitério Chora Menino.”

Viram: a notícia registra no óbito o que é sabido, o não sabido e o boato. Assim, Lampião nasceu no intervalo aberto entre 1893 e 1905. Ou seja, ficou num limbo durante 12 anos, indeciso entre nascer ou não nascer! Ora, nem Shakespeare deteve tamanha imprecisão de datas para o seu nascimento. Enfim, amigos, concluo rápido uma semana pós-obituários. Lá em cima escrevi que o bom da Folha é que a gente morre depois. Mas às vezes também nasce antes.

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[Urariano Mota é jornalista e escritor]