Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As provas do revisor detetive

Decifrar a vida de Rodolfo Walsh parece mais difícil do que resolver um dos intrincados casos policiais que seu detetive e alter ego Daniel Hernández parecia tirar de letra. No Brasil, já se conhecia de Walsh seu livro mais famoso, Operação Massacre, relato jornalístico da chacina macabra acontecida durante o governo do general Aramburu. Agora, a Editora 34 lança Variações em Vermelho e Outros Casos, de Daniel Hernández, revelando sua faceta de escritor de novelas policiais. Hernández, seu detetive e alter ego, exerce a profissão de revisor em uma pequena editora. Usa as qualidades do ofício – minúcia, senso de ordem, fantasia – para desvendar crimes aparentemente inexplicáveis.

A própria vida de Walsh (1927-1977) parece uma história de caminhos que se bifurcam. Filho de imigrantes irlandeses, foi criado em orfanato entre os 10 e os 13 anos depois de a família ter caído na miséria durante a crise econômica argentina (1930-1953). Exerceu vários ofícios, entre os quais o de lavador de pratos e limpador de janelas até se empregar na Editora Hachette como revisor e, em seguida, graças ao fato de ser bilíngue, como tradutor do inglês. Nesse métier, verteu para o espanhol obras de Raymond Chandler e Ellery Queen, entre outros. Ele próprio passou a escrever nesse gênero e ganhou uma menção honrosa por seu conto Las Tres Noches de Isaías Bloom de um júri que tinha entre seus membros Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares.

Lógica implacável

Tendo pertencido a um grupo de extrema-direita na juventude, o Walsh adulto passou para o lado oposto. A repercussão de Operação Massacre, publicado em 1957, cresce a cada reedição e o torna um nome famoso. Em 1959 viaja a Cuba e participa da consolidação da agência Prensa Latina, em companhia de Gabriel García Márquez. Mas é lembrado na ilha dos irmãos Castro não apenas por sua atividade jornalística, mas por haver decifrado uma mensagem que permitiu descobrir os preparativos para a invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Walsh era atento a detalhes e sinais. A dica para a investigação que redundou em Operação Massacre havia sido uma frase simples, solta por alguém durante uma noite, num bar.

De volta à Argentina, Walsh desenvolve intensa atividade literária e jornalística, mas se envolve progressivamente com a política. Em 1973 entra no movimento Montoneros, da esquerda armada peronista. Com a ditadura de 1976, cai na clandestinidade. Menos de um ano depois é metralhado, depois de haver postado uma carta na qual denunciava os crimes do regime militar. É um entre os milhares de “desaparecidos” da ditadura argentina.

Esse é o escritor, de vida agitada e pena fina, que está se redescobrindo.

O volume Variações em Vermelho contém, além do texto-título, mais quatro relatos, além de um pequeno ensaio do próprio Walsh sobre a literatura policial, um posfácio do tradutor Sérgio Molina e uma notícia biográfica do autor. Nos cinco contos, o detetive informal é o revisor Daniel Hernández, sempre em auxílio do seu amigo, o delegado Jiménez, este um protótipo do senso comum, honesto e até inteligente, mas pouco apto a transpor as fronteiras do pensamento convencional. O esquema de narrativa é aproximadamente o mesmo em todas as histórias. O relato do crime, sempre um assassinato, o mistério absoluto que o cerca ou, pelo contrário, as evidências que incriminam alguém de maneira demasiado óbvia e, por fim, a reunião em que Daniel desfila sua implacável lógica para uma plateia composta do delegado, dos suspeitos e, claro, do culpado.

Avessos à racionalidade

Difícil é dizer qual dos contos é o mais interessante. Cada qual apresenta seu encanto particular. No primeiro, A Aventura das Provas de Prelo, há, por assim dizer, o nascimento do detetive Daniel Hernández, num ambiente que é o do seu trabalho. De fato, o tradutor e intelectual Raimundo Morel encontra-se na editora Corsário e discute com Daniel as provas de sua última tradução. Volta para a casa e cinco horas depois é encontrado morto. É o primeiro caso de Daniel Hernández em socorro do delegado Jiménez e, nele, o detetive trabalha sobre as próprias provas da tradução para deduzir e chegar às suas conclusões.

O conto Variações em Vermelho traz uma típica situação do gênero – o problema da porta fechada: como alguém, suspeito de um crime, pode ter se fechado por fora e sido encontrado no próprio local do delito? Assassinato à Distância fornece outro enigma: como encontrar um crime e, portanto, um assassino, num caso em que tudo inclina à ideia de suicídio? A Sombra de Um Pássaro tem a elegância de uma solução puramente poética. E nenhum dos relatos supera em concisão, nem em humor, o enxuto Três Portugueses Embaixo de um Guarda-chuva (Sem Contar o Morto).

O prazer dessas narrativas é puramente literário. O leitor atento encontra nelas a sombra de Bustos Domecq, pseudônimo que encobria a coautoria de Jorge Luis Borges e Bioy Casares. Domecq é autor de Seis Problemas para Don Isidro Parodi, “detetive” que se encontra encerrado num cárcere e, portanto, impossibilitado de empreender qualquer investigação factual. Seus limites são os de sua mente – e esta se mostra suficientemente ampla para decifrar, apenas pela dedução lógica, os mais complicados crimes. É a vitória da inteligência pura, costuma-se dizer. Mesmo com mais mobilidade que Parodi, Daniel Hernández usa apenas as suas “pequenas células cinzentas”, para falar como Hercule Poirot, o personagem célebre de Agatha Christie.

Hernández é personagem da primeira fase da carreira literária de Rodolfo Walsh. Logo ele descobriria que existem fatos avessos à racionalidade, que não podem ser compreendidos apenas pela “inteligência pura”. Em especial se acontecem na então convulsionada América Latina.

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[Luiz Zanin Oricchio, do Estado de S.Paulo]