Mohammad Reza Pahlevi (1919-1980) foi o último xá do Irã, deposto em 1979 pela Revolução Islâmica do aiatolá Ruhollah Khomeini. Um retrato minucioso sobre o lado despótico e sanguinário do regime do imperador foi publicado em 1983 pelo jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007). É um texto metódico, assumidamente pessoal e sedutor, agora lançado com tradução.
Kapuscinski possui uma biografia profissional que todo jornalista aventureiro adoraria ter. Único correspondente estrangeiro da PAP, agência de notícias da Polônia comunista, cobriu 27 revoluções ou golpes de Estado e oscilava, em suas reportagens, entre o jornalismo e o relato literário, que julgava mais apropriado para amarrar, de modo analítico, a complexidade factual.
O Xá caiu porque seu projeto de poder – com o dinheiro do petróleo, quis transformar o Irã em poucos anos na quinta potência mundial – não combinava com a nação que seu regime oprimia. Importou maquinário de última geração sem ter portos para desembarcá-lo ou mão-de-obra para operá-lo. Comprou dos Estados Unidos 160 caças F-16 sem ter pilotos para voá-los. A cada quatro militares de patente superior, um era emprestado pelos Estados Unidos. E remunerado a US$ 200 mil ao ano, num país em que viviam miseravelmente camponeses e favelados.
Essa megalomania só funcionava porque, num país então com 35 milhões de habitantes, a Savak, polícia política, reunia 30 mil agentes e uma rede de 2 milhões de alcaguetes. Parte da elite intelectual se exilou. Temia a morte, a tortura e os 6.000 presídios que permanentemente hospedavam 100 mil prisioneiros políticos. Como classe intermediária, havia os “petrocratas” e seus familiares, ligados à corte e às Forças Armadas, presenteados com contratos públicos e responsáveis pela evasão anual de US$ 2 bilhões, depositados no estrangeiro.
Escrever com o fígado
A exemplo do que pensavam os americanos, a hierarquia montada ao redor do trono temia preferencialmente o Tudeh, o Partido Comunista – dizimado após o golpe que depôs, em 1953, o primeiro-ministro Mohamed Mossadegh, um nacionalista que estatizou as reservas britânicas de petróleo. Com associações e partidos proibidos, diz Kapuscinski, “o regime do xá deixou como escolha ao povo somente a Savak ou os mulás. E o povo, é claro, escolheu os mulás”, como forma legítima de resistir a uma “ditadura especificamente brutal e pérfida”.
O jornalista é, no entanto, benevolente para com com o extremismo xiita. Visita, sem palavras de reprovação, a parte externa da embaixada americana em Teerã, no Natal de 1979, quando diplomatas e funcionários eram reféns de milícias religiosas. Kapuscinski desconhecia, três anos após a queda do xá, os rumos que a República Islâmica iria tomar. Khomeini foi, para ele, mero porta-voz dos oprimidos numa história feita de opressão. Naquele momento não cabia no raciocínio do jornalista a hipótese de o regime também se tornar intolerante.
Digamos, no entanto, que são detalhes menores de um livro marcado pela indignação. O “novo jornalismo” que Kapuscinski pratica, seja lá qual for o significado dessa expressão, não é pilotado pela razão ou pelos bons sentimentos políticos. É um escritor que tem o mérito de escrever com o fígado.
Repórter “desafiava qualquer manual de redação”
Ryszard Kapuscinski não foi um repórter ortodoxo. “Adotou uma forma de apuração que desafiava qualquer manual de redação”, diz a jornalista Dorrit Harazim, no posfácio da edição brasileira de O Xá dos Xás. Ela cita uma biografia do correspondente que um outro polonês, Artur Domoslawski, publicou em 2010. Há nela a constatação de que Kapuscinski incorria em imprecisões e acrescentava às reportagens e livros personagens inexistentes, ou que não chegou a conhecer ou entrevistar. Em outras palavras, cometia o pecado da ficção.
O Guardian entrevistou Domoslawski, aliás processado pela viúva do repórter porque a biografia, entre outras coisas, relata casos extraconjugais e insinua uma relação um tanto estreita entre ele e os serviços de inteligência soviéticos.
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[João Batista Natali é jornalista]