No mezanino do hotel Novo Mundo, Flamengo – onde, há 11 anos, se hospeda às terças, vindo de São Paulo para comandar ao vivo, na TV, o programa Observatório da Imprensa – o jornalista e escritor Alberto Dines, que fez 80 anos semanas atrás, lê os jornais dispostos sobre uma mesa de madeira encerada.
Sua figura fidalgal sob a luz da manhã filtrada por telas, a testa franzida, os olhos argutos, a meia-cabeleira à Saramago, fazem pensar na verve do incansável (e por vezes temido) crítico da imprensa, em publicações diárias online que geram debates apaixonados com editores e chefes de redação. No trato pessoal, contudo, o homem que consolidou a lendária reforma do Jornal do Brasil nos anos 60 e foi baluarte da resistência escrita nos anos de chumbo exibe um sorriso franco que desarma o ouvinte, como o fazem os argumentos que usa para relativizar o mito que gira em torno de si.
O homem que queria ser cineasta
– Essa visão de velho homem de jornal dando bronca é uma natureza minha, que herdei da militância de meu pai no sionismo de esquerda e da paixão intelectual de minha mãe. Por um lado, faz até bem, pois me liga com a realidade. Por outro, me entristece o fato de colegas acharem que, ao criticar, eu os estou atingindo pessoalmente. “Agora eu vou pegar o Dines!”, dizem. Precisam entender que, certo ou errado, eu critico por amor à profissão. Sou o sujeito mais “lista negra” da mídia brasileira. Não devia ser assim. A imprensa tinha que ser mais descontraída, gozar suas performances e suas falhas.
Jacta-se, contudo, de se dar bem com “todos os donos de jornal” e de já ter passado por vários veículos. Recorda-se da visita que fez, em 1966, foi à casa de Roberto Marinho, que o convidava para cuidar da redação de O GLOBO.
– Tive que recusar por estar envolvido demais com o JB. Mas nos encontramos várias vezes nos anos vindouros. Ele me chamava de “Dines”, com um respeito familiar. Era um jornalista de verdade.
A verve de Dines não se limita à posição de monitoramento da imprensa que terminou por assumir. Na própria comunidade judaica, que se orgulha de integrar, criou ranhuras por ter, diversas ocasiões, contestado as posições de Israel:
– Em 1977, quando Menachem Begin foi eleito, escrevi um artigo na Folha de S.Paulo dizendo que a tradição direitista não tinha nada a ver com a criação do Estado de Israel. A comunidade queria me excomungar. Não se trata só de Marx nem de Ben Gurion, as do Velho Testamento: todas as doutrinas sociais estão nos Profetas! É só ir lá!
Em fins dos anos 40, filiado à juventude sionista de esquerda, abandonou os estudos, no Andrews, seguindo a orientação de não se render ao modelo burguês do diploma.
– Era a redenção pelo trabalho que o movimento adotou. Em algumas famílias houve tragédias, mas meus pais aceitaram. Fiz curso de tratores, trabalhei em oficinas, sujei a mão de graxa e vivi seis meses num kibutz em Jundiaí. Mas não aguentei a vida coletiva. Ninguém aguenta. Pelo menos, ninguém que preze minimamente a individualidade.
A grande surpresa é que Dines queria mesmo era ser cineasta e terminou jornalista por acaso. Ao deixar o movimento, dedicou-se ao sonho. Fez documentários com Alberto Chatovski (que comandaria o Cinema 1, no Leme, e hoje faz parte o Grupo Estação). Um deles percorria as regiões da seca em retratos eisenstenianos. Com narração, pasmem, de Cid Moreira, o filme ganhou um festival da juventude do Partido Comunista, que Dines jamais integrou, filiando-se à esquerda democrática do PSB.
– Eu não ganhava nada. Só aprendia. Entrei no Clube de Cinema do Brasil, fundado por Alex Viany e Vinicius de Moraes e para a Associação de Críticos cinematográficos do Rio. Fui assistente de direção e crítico de cinema da Cena Muda, revista que funcionava na Lapa. Um dia, Naum Sirotsky, chefe de reportagem da “Visão”, perguntou se eu queria ser repórter cultural. Carteira assinada, férias, tudo. Aceitei na hora.
Era o início dos anos 50, época em que o Diário Carioca fez a reforma e surgiam Última Hora, Tribuna da Imprensa, Manchete, com os Diários Associados de Chatô ainda no auge. Não deu nem para retomar o estudo formal. A transição do cinema para o jornalismo se fez sem grande sofrimento.
– O jornalismo, assim como o cinema, é uma forma de arte total, magna. Ele pode ser praticado como técnica, estudado como ciência, mas é, antes de tudo, uma arte.
Não se trata só do arcabouço das artes gráficas, explica Dines, nem da tradição do jornalismo literário ou das crônicas e biografias, que já bastariam para sustentar a tese.
– Como o jornalista, o artista busca a verdade, tem a coragem de ser, e de enfrentar o desafio da perfeição contra o tempo. A escrita jornalística, não é novidade, é um gênero literário. Por isso o jornalismo subsiste: porque é arte. Se o registro histórico não for artístico, fica chato, vira um documento burocrático que você arquiva sem ler. Por isso, na pele de jornalista, me sinto também um artista.
Não só por isso: o texto de Dines, em obras como Morte no Paraíso, na qual trata da bela e trágica passagem de Stefan Zweig pelo Brasil – uma de suas obsessões, assombrado e fascinado que é, até hoje, pelo impacto das manchetes da Segunda Guerra –, é um texto fundamentalmente literário, típico da pena de um esteta, caráter que se estende por seus textos mais objetivos.
– O gosto pela palavra é um prazer igual ao de ir ao cinema ver O artista ou de receber o próximo New Yorker Book Reviews, que assino desde que o Lucas Mendes, nos anos 70, me deu de presente um ano grátis. Eu fico babando.
O prazer de ajudar a mulher, a também jornalista Norma Couri, na cozinha do apartamento em Vila Madalena – que em breve pretende deixar para voltar a morar no Rio – ou de encomendar frios no Empório Santa Luzia é o mesmo de caçar, nos jornais do dia, palavras-chave que o levam a rever o universo dos conceitos em que estão inseridas e, assim, fundamentar sua plataforma crítica diária.
– Sou um homem do papel – ele diz, mesmo tendo à mesa um iPhone embalado por capinha amarela, que garante datar de apenas 15 dias. – Preciso estar atento aos trinados, edito um site que envolve debate e muita discussão consultiva. Mas meu negócio são mesmo as folhas do jornal, tecnologia incomparável, pois a notícia é hierarquizada, editada. A internet está enlouquecendo e não consegue superar essa arrumação.
“O Rio tem que voltar a ser o tambor do país”
Nascido pertinho do hotel, na Glória, passou os primeiros anos de sua vida numa pensão na Corrêa Dutra. Pai de quatro filhos de seu primeiro casamento, com Rosaly, se diz carioca da gema, fã do Belmonte (que conheceu quando era realmente só um boteco), apesar do espírito cosmopolita que o faz adaptar-se bem a qualquer cidade.
Mora desde 82 em São Paulo (com uma pausa de sete anos para pesquisas sobre a Inquisição em Lisboa). Chegou a viver um ano em Nova York, como professor convidado.
– Mas o Rio, sim, é que é extraordinário. Aqui perto mesmo, na Oswaldo Cruz, há uma escola construída em 1902, um senhor prédio, com janelões. Pensavam em formar um povo. Fomos capital, todo mundo de valor veio para cá. Na Rua do Ouvidor chegaram a funcionar dez editoras. Perdemos essa centralidade, mas temos que fazer força para voltar a ser o tambor do país. Por que? Ora, porque já fomos.
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[Arnaldo Bloch é jornalista e colunista de O Globo]