Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O “jornalismo mágico”

Tanto quanto pela qualidade de seu texto, durante muito tempo o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007) foi admirado internacionalmente pela coragem com que se aventurava na cobertura de guerras, revoluções, golpes militares e outras situações de conflito em dezenas de países do Terceiro Mundo. Nessas heroicas perambulações, ele teria sido condenado ao pelotão de fuzilamento quatro vezes, teria conhecido Che Guevara, teria enfrentado os maiores perigos, desconhecendo qualquer limite ou preocupação com sua segurança. Hoje se sabe que não foi bem assim. Uma biografia recentemente publicada – Kapuscinski Não-Ficção, de Artur Domoslawski, ainda inédita no Brasil – revelou que, se o polonês desconheceu algum limite, foi entre o jornalismo e a ficção.

Reiteradamente, Kapu, como era chamado, inventou personagens e declarações em seus livros e reportagens, nunca encontrou o Che e, das quatro alardeadas condenações à morte, só há indícios convincentes de uma. Seu maior personagem foi na realidade ele mesmo: um ídolo com pés de barro. Por isso mesmo, sua obra foi classificada como “jornalismo mágico”, evocando o movimento literário latino-americano marcado pela fantasia de suas criações, o realismo mágico. O termo não foi cunhado por um colega invejoso, mas pelo respeitado Adam Hochschild, autor de um ensaio clássico sobre o Congo,O fantasma do Rei Leopoldo. Na biografia de Kapu, aliás, Domoslawski não se limita a apontar os casos de invenções e falsificações históricas nos livros de Kapuscinski: ele revela que o jornalista prestou serviços ao serviço secreto de seu país, prejudicando colegas numa espécie de barganha para ter a liberdade de viajar (com subsídio do governo comunista) e escrever seus livros e reportagens ao redor do mundo.

Distinção entre verdade e mentira

De Kapuscinski, acaba de ser lançado O Xá dos Xás (Companhia das Letras, 200 pgs. R$39), relato supostamente jornalístico sobre os últimos dias do Xá Reza Pahlevi e os primeiros dias da Revolução Iraniana de 1979, que alçou ao poder o aiatolá Khomeini. Independente de seu valor literário, como reportagem o livro não se sustenta de forma alguma: já nas primeiras páginas, com uma longa digressão sobre a bagunça de seu quarto de hotel em Teerã e sua preguiça em arrumá-lo, Kapu mostra que o protagonista do texto será ele próprio, não o Xá. E, no restante da narrativa, fragmentada e próxima de um rascunho, ele combina uma análise altamente impressionista da sociedade iraniana com um resumo parcial e escolar da História do país, repleto de imprecisões e preconceitos, tudo isso entrelaçado com comentários maneiristas sobre 12 fotografias (nem todas reproduzidas no livro) e com supostas entrevistas de iranianos comuns, cujas vozes são tão parecidas entre si – e parecidas com a voz de Kapu – que parecem ser fictícios.

Por tudo isso, chama a atenção na edução brasileira, nos textos da orelha e do posfácio (este da jornalista Dorrit Harazim), o malabarismo com que se tenta justificar a fragilidade de O Xá dos Xás enquanto reportagem: “(…) Kapuscinski põe em prática seu ambicioso projeto de fazer uma cobertura jornalística sem se ater à objetividade”; “(…) a busca da verdade pode transcender meros fatos”; “(…) a narrativa se baseia numa busca de experimentação e não de precisão factual”; e, o que me parece mais grave, “(…) deixa de ser vital saber se no Irã ele efetivamente colheu os depoimentos que diz ter colhido (…); se muitos dos personagens e detalhes da vida iraniana que alimentam as páginas de O Xá dos Xás não seriam criações extraídas de viagens anteriores, relatos de terceiros, leituras volumosas ou análises minuciosas do noticiário da época”. A distinção entre verdade e mentira pode não existir na literatura, mas no jornalismo existe e, sim, é importante, o que diz respeito à própria ética da profissão.

O mito não resistiu à passagem do tempo

Como se tudo isso não bastasse, O Xá dos Xás ensina pouco e confunde muito. Traz um retrato simplista, estereotipado e unidimensional de Reza Pahlevi, e sua análise das contradições da sociedade iraniana e da geopolítica internacional da década de 70 é rasteira. Kapu ignora completamente o interesse norte-americano na derrubada do Xá, por razões políticas (ligadas à Guerra Fria) e econômicas (o petróleo, que até hoje continua motivando guerras e derrubando governos na região). O maior pecado do Xá foi entrar em rota de colisão com as grandes companhias petrolíferas americanas e europeias; daí o desinteresse dos Estados Unidos e da Inglaterra em evitar a Revolução Islâmica. A impressão que dá é que Kapuscinski está mais preocupado em exercitar seus dotes literários, aliás questionáveis, do que em oferecer ao leitor um balanço equilibrado e sério da revolução. Entre muitos erros, Kapu escreve, por exemplo, que Mossadegh foi eleito primeiro-ministro democraticamente, em 1950: ele foi na verdade nomeado pelo Xá – e mais tarde derrubado pelo mesmo Xá, atendendo à pressão americana.

A partir dos anos 80, Kapuscinski viveu obcecado pela ideia de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura – com o apoio explícito do ditador polonês Jaruzelski. Ao longo dos anos, sua candidatura foi perdendo gás à medida que apareciam revelações sobre o seu passado e questionamentos sobre a veracidade de seus textos – inclusive e principalmente suas reportagens sobre a África, por muitos consideradas fantasiosas e neocolonialistas. O mito Kapuscinski não resistiu à passagem do tempo, e é bem feito.

***

[Luciano Trigo, de O Globo]