Alguns anos depois de comprar uma cobertura nos Jardins, em São Paulo, Antônio Delfim Netto passou a receber insistentes alertas do engenheiro responsável pelo projeto do prédio. O homem tentava convencer o economista a interromper o processo de expansão de sua já superlativa coleção de livros, temendo que o peso excessivo pudesse abalar as fundações do condomínio. “‘Delfim, você está abusando’, ele me dizia. ‘O cálculo foi bem feito, aplicamos um coeficiente de 50% depois de todo cálculo bem feito, mas você não pode continuar a pôr esses livros aí. O peso vai abalar as estruturas’”, conta o ex-ministro da Fazenda.
Interromper a coleção, jamais. Obstinado por livros desde os 14 anos, quando comprou seu primeiro título, da Civilização Brasileira, Delfim costuma dizer que a biblioteca é seu “maior patrimônio”. O economista, portanto, não teve dúvidas: optou por seu edifício intelectual e arranjou um destino mais seguro para todos os seus livros – os que já existiam e os que estavam por chegar. Era o fim da década de 1980, quando levou para o sítio que acabara de comprar em Cotia o núcleo do que é hoje uma das maiores e mais impressionantes coleções particulares no Brasil: 290 mil itens, cerca de 130 mil deles apenas de livros.
Nas proximidades de São Paulo, houve condições de a biblioteca ser expandida mais tranquilamente, ao som do canto de centenas de tucanos, bem-te-vis, sabiás e jacus também cuidados por Delfim e alimentados com dois sacos de semente de girassol por semana. Os pássaros permanecerão no local, mas as quatro amplas salas de 1.500 m2 serão esvaziadas. Todos os livros organizados por Delfim ao longo de 70 anos vão mudar para uma nova e definitiva casa: a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis, a FEA, da Universidade de São Paulo.
Estilo sóbrio
Com o novo endereço, o acervo passa a ser público e integrado à biblioteca da FEA. A reforma do prédio, erguido no andar térreo e adequadamente projetado para aguentar todo o peso do conhecimento, está praticamente concluída. Com a bênção do dono dos livros, a transferência ocorrerá até o segundo semestre. “Estou alegre porque a biblioteca, para os descendentes, é um peso”, diz o ex-ministro de 84 anos. “Qual era o fim daquilo? Era ser vendido em pedaços ou um livreiro comprar e tudo aquilo que eu juntei ser dividido.”
Pessoas próximas a Delfim temem que ele sofra da síndrome do ninho vazio. Como na tela “O Bibliotecário”, de Giuseppe Arcimboldo – em que um homem tem cabeça, membro e tronco compostos de livros –, a coleção de Delfim parece “parte do seu ser, um pedaço de seu corpo, um braço”, revela um amigo. “A sensação é como a de doar um filho. A biblioteca tem sido um investimento pessoal, emocional, intelectual e financeiro de uma vida.”
Delfim é modesto ao falar sobre seu acervo. Gosta de dizer que a biblioteca nasceu por acidente e rejeita o adjetivo bibliófilo, já que suas prateleiras valem mais pelo todo do que pelas raridades. Sente-se mais confortável com a palavra colecionador. “Não queria ter uma biblioteca. Ela foi se acumulando. O fetiche é pelo livro em si, que tem um sabor sensual”, conta Delfim. Hoje o acervo está num espaço de estilo sóbrio, com poucas fotos de família, alguns quadros e preenchido por uma sucessão infindável de fileiras ordenadas de livros dispostos em estantes de madeira escura. “É tudo compensado”, explica Solon Luís Pereira, que acompanha Delfim e seus livros desde o período em que ele era ministro nos governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo.
Orientações bibliográficas
Nos galpões aromatizados com uma essência de mamona – especialmente desenvolvida por Pereira para combater pragas – estão abrigadas as primeiras edições de O Capital (Karl Marx) e de A Riqueza das Nações (Adam Smith). São obras que integram uma coleção germânica de grandes clássicos. “Quando você pega A Riqueza das Nações, está consultando exatamente a primeira edição, só que é uma cópia feita por alemães, portanto melhor que a original”, brinca Delfim.
A biblioteca exibe algumas obsessões do colecionador: quase todas as 19 edições de Introdução à Análise Econômica, de Paul Samuelson, e uma coleção definitiva da obra de John Stuart Mill. O economista é o único no Brasil de posse desse tesouro. Há também um farto e raro material de pensadores italianos escrito antes de clássicos de Smith, Mill, Thomas Malthus e David Ricardo. Nomes como Antonio Serra (século 16) e G. Montanari (século 17) se destacam. A coleção (“Collezione Custodi”) de 50 volumes é desconhecida no Brasil, já que muitos imaginam “que a economia nasceu em Cambridge”, comenta.
Há ainda uma queda por enciclopédias. Duas edições de Diderot e D’Alembert – a primeira, de 1777, e uma edição crítica de John Lough e Jacques Proust, de 1976 –, além de quatro diferentes da “Britânica”. Duas fazem os olhos de Delfim brilhar: a de 1909, com verbetes do economista Francis Ysidro Edgeworth, e a de 1929, com textos de Allyn Young. “A coleção de Delfim é impressionante menos pelas primeiras edições e mais pelas edições corretas”, diz Eduardo Giannetti, professor do Insper e escritor com livre acesso à biblioteca. Ele mesmo se beneficiou de duas orientações bibliográficas de Delfim que só existem em Cotia e mudaram o rumo de seu trabalho: Statement of Some New Principles on the Subject of Political Economy (John Rae) e Les Consequences de la Hausse des Prix au Point de Vue National, Moral et Intellectuel (C. Gide).
“Ele não joga nada fora”
Leitor voraz, Delfim investe sete horas por dia em leitura, uma vantagem de seus 84 anos, assegura. “Tenho prazer em pegar o livro, de olhá-lo, lê-lo. Talvez seja um desvio”, observa. “Quase não leio o livro inteiro, apenas um capítulo que me interessa mais, mas sempre dou uma olhada na diagonal no resto.” Para ele, os livros são obras abertas e variam de acordo com o tempo. “Quando você lê o Adam Smith a primeira vez, é um Adam Smith. Quando você lê o Adam Smith mais velho, acha que tudo está no Adam Smith.”
Muitos de seus exemplares são “vivos”, com registros que evidenciam sua intimidade com os textos, marcados com observações nas margens, trazendo palavras e frases sublinhadas. Cerca de 50% dos títulos são em inglês, 30% em português e o restante em francês, italiano, espanhol e alemão. “Não se constitui mais uma biblioteca como a do Delfim. Não é só a parte de seu investimento financeiro. É a obsessão dele, o método. Sou capaz de apostar que, em teoria econômica e filosofia, não há nada que se compare”, afirma Giannetti.
Uma das marcas dessa biblioteca é a constante atualização, com média de seis registros diários de novos títulos selecionados pessoalmente pelo próprio economista. E, uma vez escolhidos, a lealdade impera: os volumes passam a se hospedar em caráter permanente. “Ele não joga nada fora”, confidencia Eduardo Frin, ex-aluno da FEA e administrador da biblioteca há 17 anos.
Cliente assíduo de sebos
A atualização do acervo segue alguns princípios. Delfim lê avidamente bibliografias e citações de artigos, livros, teses e periódicos de sua área. As novidades são anotadas e invariavelmente repassadas para a fiel assistente, Beti Kogan, que corre atrás das referências. Tão logo o material chegue, o ex-ministro olha um a um antes de serem arquivados.
Cada exemplar transforma-se, assim, numa testemunha do empenho de seu colecionador, iluminando a sua personalidade. “A biblioteca sempre reflete a forma como o seu dono vê o mundo”, diz. E suas escolhas estão a anos-luz do pugilato ideológico que domina o debate econômico desde sempre. Para alguns, é a melhor biblioteca de marxismo analítico no Brasil, com mais de dez mil exemplares. “Como colecionador, Delfim tem uma visão ampla, sem dogmas, sem preconceitos”, diz Reinaldo Guerreiro, diretor da FEA.
O ex-ministro tem também uma veia de editor: reorganiza artigos de livros e papers em volumes, dando origem a novos padrões e combinações. No início, o material era fotografado. Depois veio o xerox, e a vida ficou mais fácil. Com a internet, nem se fala. O primeiro capítulo dessa história começou quando Delfim entrou para a Gessy Lever como office-boy, aos 14 anos. Na empresa, conheceu Ayrton Alves Aguiar, médico que o encaminhou por um enredo de admiração pela leitura e o orientou nos primeiros passos. Ambos conversavam sobre livros da coleção “Espírito Moderno”, organizada por Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. Logo se tornou cliente assíduo da Livraria Ornabi, um dos maiores sebos do Brasil até os anos 80. “Eu tinha uma conta lá. Tirava os livros e no fim do mês pagava um pouquinho.”
Algumas surpresas
Primeiro, os livros, acomodados num quarto na casa onde morava com mãe, eram mais de interesse geral e dialogavam com o conhecimento científico. Em 1951, os volumes já não cabiam em um cômodo. A entrada na faculdade mudara seu foco de interesse. Enquanto boa parte dos jovens se encantava pela lógica de Marx, Delfim era um fabiano, que buscava os ideais socialistas por meios graduais e reformistas. Em 1947, influenciado por Teoria do Preço, de George Stigler, viu que os sonhos de fazer o monopólio dos bens de produção nas mãos do Estado, caro aos fabianos, “ia levar a uma porcaria, como levou”.
A partir desse momento, sua biblioteca passou a ganhar os contornos atuais, mais dirigida para as ciências econômicas, área que responde por mais de 50% de todo o acervo. Temas coadjuvantes são matemática e ciências sociais, que representam cerca de 20%. Delfim revela que há tempos não lê ficção. “Isso foi uma coisa que ocorreu no meu mundo até os 20 anos. De vez em quando acontece um negócio tão importante, como o Guimarães Rosa. Aí você é obrigado a ler, e não entender”, diz. Seu favorito é Machado de Assis. A finura dos textos, a estrutura dos livros e sua visão de mundo ainda são “insuperáveis”.
Apesar do foco, as lombadas expostas nas estantes revelam uma constelação de temas tão variados quanto história, literatura, biologia, geografia, artes, estatística, política, religião, antropologia… Um passeio pelos corredores relativamente estreitos permite o encontro com algumas surpresas, como As Mil e uma Noites, cartas de d. Pedro I à marquesa de Santos, obras de Lewis Carroll, de Câmara Cascudo, originais de Olavo Bilac, livros de Shakespeare, Richard Dawkins, filosofia zoológica, São Tomás de Aquino, Plínio Salgado, coleções de grandes pintores. Apesar de não ser uma biblioteca universalista, em meio àquela infinidade de títulos se tem a impressão de que todas as coisas que não se conhece estão ali materializadas em letras.
“O valor da coleção é emocional”
Muitos daqueles livros foram adquiridos por meio de um trabalho de detetive. Depois de frequentar livrarias no Brasil, Delfim passou a explorar novas geografias: bisbilhotava sebos e antiquários no exterior. “A procura é melhor do que o achado”, diz. “Hoje não tem a menor importância porque tem a internet. Você está no mundo inteiro.”
Na época em que trabalhou como ministro, o acesso aos livros de ponta era muito difícil, mas suas viagens internacionais eram comuns: o Brasil se preparava para lançar bônus no exterior e empréstimos externos estavam sendo negociados. Em todos os destinos, Delfim aproveitava pelo menos um dia para vasculhar as capitais atrás de boas publicações usadas ou novas. “A forma de descansar de Delfim era pesquisar esses sebos”, diz Paulo Yokota, ex-professor da USP que há mais de 40 anos trabalha com o economista.
Alguns dos melhores sebos estão em Londres, que tem “coisas do arco da velha”, e no bairro de Kanda, em Tóquio, garante Delfim. Na cidade, tornou-se um freguês. Giannetti atesta a veracidade de sua preferência. Quando esteve numa livraria no Japão, foi questionado pelo vendedor, assim que sua nacionalidade foi identificada: “Quem é esse brasileiro, Antônio Delfim Netto, que compra todos os livros que saem?” Aqui no Brasil, o círculo de livreiros amigos de Delfim também era imenso. Disputou e adquiriu bibliotecas inteiras, o que faz até hoje. A média de cada livro usado está em torno de R$ 20,00. Em geral, quando são comprados cem volumes, a biblioteca sai por R$ 1.500, em três vezes. “Mas o valor da coleção é emocional”, diz Delfim. Luís Arroba Martins (1920-1977), secretário da Fazenda do governador Abreu Sodré, foi durante anos um dos mais ferrenhos competidores por bibliotecas.
Síndrome do ninho vazio
Recentemente, Delfim “salvou” um acervo de matemática “espetacular”. “Um professor da USP morreu e a biblioteca dele teve o fim de todas as bibliotecas dos professores da USP que morrem”, lamenta. “Essa paixão é muito mais generalizada do que parece. E o drama é este: morreu, o livro se torna um transtorno, a família associa ao sujeito. É até um processo psicológico.”
As conversas sobre a doação da biblioteca e a manutenção de seu filtro de colecionador foram tema de negociações ao longo de anos com dois diretores da FEA, Carlos Roberto Azzoni e seu sucessor, Guerreiro. Instituições particulares haviam elaborado projetos para receber o acervo, mas sua relação com a USP determinou o destino. Ele foi aprovado no vestibular da universidade em 1948 e lá seguiu carreira até tornar-se professor emérito. “Estou devolvendo à USP um infinitésimo do que ela me deu.” A USP já havia montado um projeto para abrigar a coleção Brasiliana, parte do acervo formado por José Mindlin e sua mulher, Guita, também doado à universidade. São cerca de 17 mil títulos nacionais e estrangeiros raros, em 40 mil volumes, com temática brasileira. “A natureza do Mindlin era diferente. Ele era um bibliófilo feliz e não há nenhuma comparação entre as coisas”, despista Delfim.
Por ser um acervo que evoluiu a partir de uma perspectiva pessoal, a classificação do acervo de Delfim não obedece a critérios de biblioteconomia. Na nova configuração, todo o material vai ser separado da biblioteca pedagógica da FEA. Sua coleção deve ser mantida como “organismo vivo”, atualizada por meio de fundo de doações, que permitirá custear as futuras aquisições, recomendadas por um conselho. Delfim, no entanto, continuará presente. Para tentar diminuir a síndrome do ninho vazio, uma sala foi projetada para trazer a mesa, a cadeira, as estantes e as máquinas de escrever de sua sala de trabalho em Cotia. “O Delfim não vai se separar dos livros, ele vai junto”, diz um funcionário da FEA.
Os livros preservam o colecionador
A USP investiu R$ 7 milhões na modernização e expansão da biblioteca – para 2.500 m 2 –, abrindo espaço para o acervo Delfim Netto mais os 170 mil itens da FEA. A transferência dos livros do ex-ministro – que exigirá caminhões e caminhões –, a aquisição de arquivos deslizantes e a força-tarefa de dois anos para a catalogação de todos os livros demandarão mais R$ 7 milhões, que devem ser captados via Lei Rouanet. A FEA já arrecadou R$ 170 mil com a doação de pessoas físicas. A meta é chegar a R$ 1 milhão. Quatro empresas também já apoiaram o projeto.
Mas, enquanto os livros de Delfim partem para novas paisagens, o economista envereda por um novo mundo: há quatro semanas, rendeu-se aos encantos do livro eletrônico. Ele atribui a decisão à insistência do amigo e jornalista Elio Gaspari e conta que passou um fim de semana do quentíssimo verão paulistano virando as páginas de seu Kindle para ler The House that Uncle Sam Built, que explica como os formuladores de política econômica criaram a bolha do mercado imobiliário e a recessão de 2008.
Para surpresa de muitos, aprovou a novidade. Já está até de olho num livro animado de introdução à macroeconomia desenvolvido especialmente para iPad que será atualizado diariamente. “É uma experiência que está sendo feita. O que vai acontecer? Bem, é um mundo que está nascendo.” Longe de ser apocalíptico e tampouco integrado, o economista defende a superioridade das obras impressas e aposta em sua durabilidade. “O livro não vai morrer”, sentencia. “Acho que o conhecimento obtido no livro é de natureza diferente do conhecimento no iPad. Aquilo é coisa passageira. O livro é um negócio permanente. O outro está na nuvem, não tem importância.”
É bom acreditar que em solo firme – longe das nuvens e de coberturas nos Jardins – uma vida toda dedicada aos livros encontrará caminhos para ser preservada. Como o filósofo Walter Benjamin, também um aficionado pelas letras, dizia: o colecionador sempre acredita que ele é quem preserva os livros, mas, na verdade, são os livros que preservam seu colecionador. “Não que os livros se tornem vivos nele”, escreveu. “É ele quem vive nos livros.”
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[Robinson Borges, do Valor Econômico]