Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Segredos da propaganda anticomunista

A participação atuação da CIA na campanha que começou em 1962 e culminou com o golpe de Estado que derrubou João Goulart em 1964 é fato histórico bem documentado. É referido no livro Queime antes de ler(Stansfield Turner, editora Record 2009) e no livro O grande irmão – Da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira (Carlos Fico, editora Civilização Brasileira, cuja resenha pode ser lida aqui).

A ativa participação do serviço secreto inglês naquele episódio, entretanto, não tem sido muito estudada nem tampouco é de conhecimento geral. Mas isto mudou com a publicação de Segredos da propaganda anticomunista, do jornalista Geraldo Cantarino (Editora Mauad X). Segundo o autor, o “IRD [Information Research Department] iniciou suas atividades na América Latina logo após sua criação, em 1948. A presença na região seguia, de uma maneira geral, o modelo internacional de atuação, que consistia de tradução e distribuição de material de propaganda para a imprensa, publicação de livros e realização de contatos com pessoas e organizações em cada país. Os tradicionais alvos latino-americanos podiam ser classificados em: a) pessoas no poder e aquelas com possibilidade de assumir o poder ou de exercer influência; b) professores universitários, estudantes, líderes sindicais e pessoas com possibilidade de entrar para a política no futuro. O objetivo do trabalho era realizar, secretamente, uma ampla e constante campanha anticomunista e monitorar ações associadas ao comunismo, reunindo informações e inteligência”.

Relutância em aceitar ameaça comunista

As primeiras ações do IRD no Brasil teriam ocorrido em fevereiro de 1949. Trata-se de um “relatório de seis páginas…”produzido por Geoffrey Stow, oficial de informação do Departamento de Informação da Embaixada Britânica no Rio de Janeiro. O referido relatório “…começa com uma ampla apresentação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e uma visão geral do comunismo no país. De acordo com o texto, Brasil e México eram os dois países na América Latina que haviam se destacado como locais adequados para o desenvolvimento do comunismo pelo Comintern”.

Porque Brasil e México haviam se destacado como locais adequados para o desenvolvimento do comunismo? O relatório da inteligência inglesa não responde esta questão. O autor do livro, provavelmente porque é um jornalista, limitou-se a explorar o documento de maneira jornalística. Mas o mesmo ainda pode ser explorado de outra forma. Afinal, todo documento é produto de um contexto econômico, histórico, social, cultural, etc… e se destina a este mesmo contexto.

Segundo o autor em 1954, portanto, 10 anos antes do golpe de 1964, os relatórios do IRD “…eram disseminados em português, após serem traduzidos da versão original em inglês no Rio de Janeiro, e listava os obstáculos que dificultavam a difusão da propaganda anticomunista no Brasil: ‘Os obstáculos para os objetivos de nossa propaganda são criados, principalmente, pelo provincianismo, o distanciamento do Brasil dos principais centros de influência comunista e sua consequente relutância em aceitar a realidade de uma ameaça comunista. Existe, no momento, pouco sentimento antibritânico, mas uma constante suspeita quanto aos motivos norte-americanos torna a propaganda dos Estados Unidos menos eficaz. Outro obstáculo é a incapacidade do brasileiro comum de levar qualquer assunto a sério por muito tempo. É por esse motivo que um material mais resumido e bem-humorado é recomendado para o Brasil’.”

Nacionalismo, patriotismo e outros “ismos”

O autor não chega a fazer qualquer comentário sobre os antecedentes históricos que justificariam a mencionada desconfiança dos brasileiros em relação aos Estados Unidos. Os interessados encontrarão um farto material no livro Presença dos Estados Unidos no Brasil (Luiz Alberto Moniz Bandeira, Editora Civilização Brasileira) que narra, por exemplo, o envolvimento norte-americano na famosa conspiração da Confederação do Equador, que pretendia destacar quase toda Região Norte do território brasileiro. A conspiração foi derrotada e levou a execução de um conspirador norte-americano no Rio de Janeiro. No dia em que o norte-americano foi executado uma embarcação dos EUA ousou hastear a bandeira a meio-pau em sinal de luto. Marinheiros brasileiros abordaram o navio norte-americano, arrancaram a bandeira dos EUA do mastro e prenderam um norte-americano que tentou reagir à abordagem.

A história das relações não muito tranquilas ou, no mínimo, sempre cheia de desconfianças entre Brasil e EUA não é e nunca foi novidade. Mas isto parece não ter interessado muito ao autor do relatório. O inglês que produziu o fragmento mencionado não era um intelectual muito sofisticado, tanto que sentiu-se a vontade para registrar por escrito sua ignorância sobre a história do Brasil e seus preconceitos em relação ao povo brasileiro. Ele realmente não procurou formar uma opinião profunda e serena acerca do país em que trabalhava. Para ele nós devíamos ser tratados como crianças, apesar de sempre termos levado muito a sério nossa independência e dignidade (bem, pelo menos até o momento em que a direita brasileira resolveu deixar a CIA agir aqui com toda liberdade a partir 1962).

Ao contrário do relatório de 1954 acima mencionado, o que foi produzido pelo IRD em 1962 e transcrito no livro é bem mais sofisticado. Robert Evans conseguiu captar bem o momento político conturbado do país e parece não se deixar influenciar por preconceitos imbecis como o do agente de inteligência que o precedeu no Brasil. Para Evans, é “…difícil visualizar qualquer alternativa eficaz ao regime existente no momento. Apesar de opiniões manifestadas no Congresso dos Estados Unidos e na imprensa de direita no Brasil, estou convencido de que a mistura de nacionalismo, patriotismo, antiamericanismo, marxismo e muitos outros ‘ismos’ se consolidará gradualmente em um partido de centro-esquerda ainda mais forte, que será, por uma grande margem, o reduto mais eficaz contra a subversão vinda do exterior. Muitos de nossos melhores clientes de material do IRD posicionam-se bem á direita deste cenário e tendem a usar o material para minar o que é de nosso interesse preservar e talvez até encorajar. Precisamos, portanto, buscar meios de fornecer esse encorajamento, e acredito que isso seja algo que o Reino Unido esteja em melhores condições de realizar”.

O medo como pretexto

Do relatório acima transcrito percebe-se claramente que em 1962, ano em que a CIA começou a trabalhar no Brasil para derrubar João Goulart junto com a extrema direita civil e militar, a inteligência britânica no país parecia querer uma solução política que não levasse ao rompimento institucional. Robert Evans parecia acreditar que os interesses britânicos no Brasil seriam melhor satisfeitos sem o rompimento institucional desejado pelos norte-americanos. Talvez imaginasse que um golpe de Estado levaria, como de fato levou, a um aprofundamento da dependência brasileira dos EUA em detrimento dos interesses do seu país.

Um pouco mais adiante, Cantarino transcreve o relatório anual de atividades comunistas no Brasil no ano de 1962. Robert Evans é enfático: “Muito tem sido escrito sobre a agitação rural e o perigo comunista de uma insurreição no campo. Eu acho um exagero. O único grupo organizado, as Ligas Camponesas, ativo somente em Pernambuco e na Paraíba, está em declínio, e os esforços dos comunistas de nele se infiltrarem e formarem outras organizações semelhantes não tiveram sucesso.” O relatório do oficial de inteligência inglês desmente, portanto, a versão oficialmente divulgada na época (e ainda hoje sustentada por alguns militares recalcitrantes) de que o golpe era necessário por causa do perigo comunista. O perigo comunista não existia e foi cuidadosamente supervalorizado pela direita brasileira que queria um rompimento institucional não porque poderia perder o controle do país, mas porque isto lhe permitiria destroçar de maneira mais brutal e eficaz os sindicatos de maneira a intensificar a exploração dos trabalhadores.

O relatório da inteligência britânica no Brasil do ano de 1963 também desmente a existência da iminência de uma revolução comunista no país. O relatório transcrito no livro afirma que o “…perigo de a subversão comunista desencadear uma súbita violência revolucionário foi menos imediato em 1963 do que em 1962”. Portanto, a verdade histórica que emerge dos documentos da inteligência britânica no Brasil é chocante. O golpe de 1964 foi planejado, preparado e levado a efeito não como reação à atividade da esquerda, pois a esquerda não representava uma ameaça política e institucional. O golpe de Estado foi fruto de uma perversidade política inenarrável. A direita brasileira, que nunca chegou a ter seu poder político e econômico realmente ameaçado, queria um controle ainda maior do país. Como ocorreu em 1937, em 1964 o golpe de Estado muito desejado pela extrema-direita apenas usou o medo do comunismo e dos comunistas como um pretexto.

Material indispensável

Apesar de em 1962 o relatório IRD deixar transparecer que uma solução de compromisso e continuidade política era desejada pelos espiões ingleses, em 1964 o embaixador britânico no Brasil, Sir Leslie Fry, comemorou o golpe de Estado. Segundo ele, o golpe de Estado foi uma “revolução anticomunista bem-sucedida”. A versão divulgada pela direita brasileira de que o golpe de estado era necessário por causa do perigo comunista (muito embora os relatórios de inteligência ingleses de 1962 e 1963 indiquem claramente que o perigo não existia) ganhou um poderoso entusiasta neste diplomata que comemorou o fato de que “…em pouco mais de 48 horas praticamente toda atividade comunista aparente havia encerrada”. A facilidade e rapidez com que a extrema-direita brasileira destruiu e silenciou a esquerda após o golpe de estado é bastante sugestiva. Se a esquerda representasse um perigo político real não teria sido destruída e silenciada da forma que foi.

Um bom livro, bem escrito e satisfatoriamente documentado. O autor poderia ter explorado mais os antecedentes históricos das relações entre Brasil/Inglaterra e Brasil/EUA para tentar entender melhor como os mesmos transparecerem nos documentos que transcreveu e/ou como estes antecedentes ou o desconhecimento deles condicionaram a produção dos relatórios ingleses. Esta deficiência, entretanto, não chega a reduzir a qualidade do livro ou o interesse que o mesmo desperta. O autor é um jornalista e produziu um livro jornalístico. Mas forneceu aos historiadores, sociólogos, antropólogos e outros cientistas sociais um material indispensável para que se possa entender melhor as relações Brasil/Inglaterra e dar a adequada proporção à participação dos ingleses no golpe de estado de 1964.

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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]