As vicissitudes do mercado editorial brasileiro, que têm sido objeto frequente de meus artigos neste “Espaço Aberto”, inscrevem-se, é claro, no contexto mais amplo do angustiante e ainda incipiente processo de formação cultural do país. O fenômeno universal da formação cultural das gentes está preso, nas sociedades modernas, principalmente a partir do Iluminismo, aos processos de educação formal em constante aperfeiçoamento, mas também à conjugação de dois fatores distintos e fundamentais: a produção e a circulação da cultura, entendida como criação humana no âmbito das artes e do pensamento.
No Brasil, como, de resto, em todos os países jovens ainda à procura de uma identidade cultural, há um enorme descompasso entre produção e circulação da cultura. Aqui a produção da cultura e, para ficar mais claro, também das artes, em todas as áreas, é rica tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo. Em contrapartida, a circulação dessa produção cultural, compreendida como o acesso a ela por parte da população brasileira, ainda é muito precária.
Essa questão é brilhantemente tratada pelo cineasta e escritor Mário Kuperman num precioso livro que apresenta três ensaios sobre o assunto: Fracasso de Bilheteria (Marco Zero, 2007) – publicação enriquecida por apresentação do sociólogo Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc-SP. Miranda destaca o fato de que, em sua crítica às formas de gestão dos processos culturais no Brasil, Kuperman lança um veemente libelo contra “interesses contemplados no consumo banalizante de produtos e serviços culturais com nenhuma capacidade de transformação social, e sem limites éticos para o desenvolvimento humano”.
A literatura que “nos exprime”
Por sua vez, logo no segundo capítulo do primeiro ensaio, Mário Kuperman sentencia: “Cultivar inteligências, alicerçar identidades, despertar consciências são tarefas de natureza cultural. E a circulação da cultura, entre nós, continua atrofiada por restos de uma espécie de feudalismo intelectual, que seguem sendo o maior empecilho ao amadurecimento do nosso povo” (página 21).
Destaco essas duas citações porque, embora digam respeito à inexistência de uma relação dialógica entre produção e circulação da cultura em sentido amplo, parecem falar particularmente do nosso mercado editorial. De fato, nesse campo o Brasil tem cada vez menos a comemorar, apesar do ufanismo ingênuo, quando não mal-intencionado, de quem está mais preocupado com negócios do que com a missão civilizadora do livro.
Como acontece no país com a criação em todas demais áreas do engenho e arte humanos, aqui a produção literária é ampla, diversificada e frequentemente de qualidade, até mesmo quando considerada do ponto de vista dos cânones mais exigentes. Refiro-me à produção de escritores que se dedicam à arte literária, inclusive não ficcional. À literatura que, no dizer de Antonio Candido, “nos exprime” como brasileiros. E é claro que o conjunto de nossa literatura – até pelos percalços que enfrenta no mercado editorial, que deveria prestigiá-la – ainda está longe de se ombrear com o que de melhor e mais expressivo é produzido no mundo, inclusive em nosso próprio continente. O que é, certamente, sintomático de que alguma coisa não está funcionando direito por aqui.
Medidas de promoção humana
Mas essa realidade, para nós pouco lisonjeira, não significa que não tenhamos muitos e talentosos escritores. Minha experiência profissional o confirma. As pilhas de originais que se acumulam na mesa de qualquer editor que trabalha com literatura brasileira é o melhor testemunho de que da enorme quantidade de textos que recebemos é perfeitamente possível extrair uma qualidade literária muito significativa. Nós, editores, só conseguimos publicar uma parcela mínima não do total de originais que nos chegam, mas daqueles que gostaríamos de ver transformados em livros.
Assim, o trabalho dos nossos romancistas, contistas e poetas não chega, ou chega muito pouco, ao leitor – comparativamente a conteúdos de outra natureza – porque tropeça antes mesmo de se aproximar do elo da cadeia do livro que o torna acessível ao público: as livrarias e os canais alternativos de comercialização. A produção literária brasileira tropeça na produção editorial. E a razão principal desse impasse é que, como regra, que, naturalmente, tem exceções, as grandes casas publicadoras, aquelas responsáveis por alimentar a circulação da maior parte de todos os livros destinados ao varejo, estão estrategicamente comprometidas com uma produção editorial voltada quase que exclusivamente para o retorno financeiro. Não se dão ao trabalho de tentar estabelecer um equilíbrio mínimo entre potencial de vendas e qualidade de conteúdo do que publicam, por exemplo, dedicando à publicação de boa literatura brasileira apenas uma fração das centenas de milhares de dólares que investem na compra de direitos e na produção de best-sellers estrangeiros que podem, ou não, transformar-se em campeões de venda também aqui.
Essa é a face perversa do nosso capitalismo subdesenvolvido. É uma prática macaqueada do mercado editorial norte-americano sem levar em conta a abissal diferença entre eles e nós, seja em poder econômico, em quantidade de consumidores de livros ou em índice de leitura per capita.
Só uma coisa pode mudar esse cenário desolador: o comportamento do leitor brasileiro. Pressupõem-se, é claro, medidas de promoção humana capazes de elevar, sobretudo, o nível de instrução, de modo a que as pessoas consigam compreender que o consumo de boa literatura, brasileira inclusive, é tão importante para a sua realização como seres humanos quanto o acesso a aparelhos eletrodomésticos, viagens de avião ou gadgets eletrônicos. Ações dessa natureza estão ao alcance de todos.
Mãos à obra, portanto, Brasil!
***
[A. P. Quartim de Moraes é jornalista e editor]