Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O desafio do negócio de formar leitores

Enquanto o Fundo Nacional da Educação (FNDE) se encarrega de entregar para as bibliotecas de 148 mil escolas públicas os mais de 10 milhões de livros paradidáticos que o MEC comprou em 2011, uma verdadeira operação de guerra que envolve um grande depósito em Brasília, os Correios e os mais diversos meios de transporte, editoras brasileiras estão de dedos cruzados na esperança de terem ao menos um título selecionado na edição de 2013 do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). O período de inscrição das obras, exclusivamente literárias, foi encerrado este mês e o resultado deve sair em setembro.

A apreensão é justificada. A escolha de um único título, se tomado como exemplo o programa deste ano, pode representar um contrato de venda de 55.744 exemplares e um cheque de R$ 790.420,56, como foi o caso da Cortez, a editora que conseguiu o segundo valor mais alto por um livro no PNBE 2012, mas que acabou ganhando na quantidade. Na negociação, cada volume de Histórias de Quem Conta História, antologia de contos organizada por Lenice Gomes e Fabiano Moraes e ilustrada por Ciça Fittipaldi, saiu por R$ 13,80. O preço nas livrarias é R$ 39,00. O contrato incluiu a produção do livro no formato MecDaisy, para os deficientes visuais, uma exigência desde 2011. O título mais barato custou R$ 2,10.

O que cada editora chega a ganhar por edital é público, mas a conta final não é clara. Isso porque existe um número limite de obras a serem inscritas e, na ânsia de terem mais títulos selecionados, elas cedem os direitos de outros tantos títulos para distribuidoras, gráficas ou escritórios de editoração. Usam também seus diversos selos e diferentes CNPJs. Assim, um livro à venda nas livrarias com o logotipo de determinada editora estampado na capa ganhará o selo da nova detentora dos direitos antes de chegar às bibliotecas escolares.

Vez dos estudantes

Karine Pansa, presidente da Câmara Brasileira do Livro, reconhece que muitos não veem com bons olhos a prática, mas ela enxerga aí um novo modelo de negócio. “Às vezes me pergunto o que há de errado nisso. Entendo que faz parte do negócio, porque a distribuidora vai ganhar menos, a editora vai ganhar menos e está se promovendo de alguma forma a viabilização desse negócio. Não é ilegal, faz parte de um novo modelo.”

“Essa é uma coisa que se os editores quiserem fazer não temos como interferir, porque o autor entrega sua obra para quem ele quiser”, explica Sonia Schwartz, coordenadora-geral dos programas do livro da FNDE, órgão responsável por fazer o edital e acompanhar todas as etapas do processo, exceto a avaliação e a escolha dos felizardos, função do MEC. O programa existe desde 1998, mas já teve diferentes formatações – no começo dos anos 2000 eram as crianças, e não as bibliotecas, que ganhavam os livros.

Este ano, foram investidos R$ 60,8 milhões na compra dos livros que vão atender 22 milhões de alunos da Educação Infantil, da 1ª a 5ª série do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos. Contando a distribuição e o controle de qualidade, que é feito pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas, o total chega a R$ 81.797.946,11 – o mercado editorial brasileiro é estimado pela Fipe em R$ 4,2 milhões. Em 2013, será a vez dos estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e do Médio receberem os acervos que variam, dependendo do edital, de 25 a 60 obras.

“Trabalho gigantesco”

Esses números superlativos não passaram despercebidos pelos grandes grupos editoriais internacionais, que garantem o seu quinhão comprando editoras brasileiras, como foi o caso da espanhola Santillana, hoje dona da Moderna e da Objetiva, ou iniciando operação no país. Maior grupo editorial do mundo, a Person já estava no mercado de didáticos do Brasil por meio do sistema de ensino SEB (COC, Dom Bosco, Pueri Domus e Name) quando comprou, em 2011, através da subsidiária Penguin, 45% da Companhia das Letras. Para além do prestígio internacional, o negócio vai inserir a Companhia no ainda mais lucrativo mercado de didáticos.

Edições SM e Leya são outros dois bons exemplos de editoras recém-chegadas que já encontraram espaço nas concorridas listas do governo. Quem experimentou, mas desistiu porque não entendeu o funcionamento do burocrático processo, foi a francesa Hachette, 6ª no ranking das maiores editoras. Em janeiro, no entanto, um funcionário dela esteve em São Paulo em busca de parceiros.

Participar de um edital desses é recompensado, mas sofrido. “Tem que seguir os parâmetros preestabelecidos, caso contrário seu livro está desclassificado. É um trabalho gigantesco que mexe muito com as editoras. Você mobiliza todo mundo e é uma decisão do tipo faz ou não faz”, comenta Karine Pansa, agora como dona da Girassol, de livros infantis.

“Questões fundamentais”

Marcos Pereira já fez e não faz mais. Até o fim dos anos 90 ele era dono da Salamandra, presença constante nas listas governamentais até hoje, mas a vendeu para a Moderna. Agora ele dirige, ao lado do irmão Tomás, a best-seller Sextante. “Quando optamos por uma linha mais comercial, saímos desse meio porque o governo não vai comprar O Monge e o Executivo. Deveria, mas não vai”, diz. Ele concorda que números enchem os olhos e que talvez tivesse sido mais acertado criar um selo para esse segmento, mas não tem do que reclamar. Pereira conta que a Sextante vende anualmente cerca de 5 milhões. “O governo não compra o Código Da Vinci, mas o mercado compra e já comprou 1,8 milhão de exemplares.”

Não é o foco da Sextante, mas é um bom negócio para grandes editoras como Companhia das Letras, Ática, SM, FTD e WMF Martins Fontes, para citar algumas das que faturaram mais de R$ 1 milhão no edital que está sendo concluído, e é imprescindível para as independentes. Metade do que a Hedra ganha desde que foi criada há mais de uma década vem dessas vendas para escolas, conta o proprietário Jorge Sallum. Com a ideia de ampliar ainda mais esse porcentual, ele criou no começo do ano a Hedra Educação.

Se por um lado o programa profissionalizou a edição de obras infantis e juvenis e viabilizou a sobrevivência de algumas casas, por outro as editorias se tornaram reféns de temas, modismos e lições. “É muito difícil a literatura infantil libertar-se de sua parceria com a escola e, através desta, com a educação. As boas obras, incluindo-se aqui as divertidas e ligeiras, tratam sempre de questões fundamentais da humanidade”, diz a pesquisadora Marisa Lajolo. Para ela, uma boa biblioteca deve ter todos os tipos de livros. “Desde os adotados e indicados pela escola até – e mesmo, sobretudo – o que a comunidade da escola quer ler. Penso, por exemplo, em best-sellers, geralmente ausentes de acervos escolares.”

“Um segue a receita do outro”

Quem escolhe quais livros o MEC vai comprar para abastecer as bibliotecas e salas de leitura das escolas públicas são, segundo o edital, instituições públicas que formam equipes com professores do seu quadro funcional, professores convidados de outras instituições de ensino superior e professores da rede pública de ensino.

No lote que está sendo entregue neste momento estão histórias clássicas, velhas conhecidas das prateleiras das bibliotecas, como Os Três Porquinhos e A Cigarra e a Formiga, e obras mais recentes. Como Treinar o Seu Dragão, série adaptada para o cinema, é uma delas. Algumas curiosidades da lista: foram comprados três livros baseados na história da Chapeuzinho Vermelho para alunos de creches e dos anos iniciais, e os jovens e adultos que voltaram à sala de aula vão treinar a leitura com Branca de Neve Em Cordel. Mas vão ler também Guimarães Rosa, Vinícius de Moraes e Clarice Lispector, entre outros.

Procurado ao longo da semana pelo “Sabático” para discorrer sobre os objetivos, metas, critérios de escolha e comissão de avaliação, o MEC apenas destacou por e-mail, por meio de sua assessoria de imprensa, pontos do edital que tratam do assunto.

Fernando Paixão trabalhou na Ática por 35 anos e acompanhou as mudanças do setor. “Na medida em que a literatura se transforma em mercado, e isso envolve grandes números, as editoras acabam fazendo mais do mesmo e isso não é bom. Um segue a receita do outro. É dinâmico, mas acho que cada vez menos os projetos literários são pensados com mais antecedência”, comenta.

“Acham que escritor é velho ou já morreu”

Jorge Sallum vê melhoras na produção, contudo faz ressalvas. “O Brasil se tornou uma excelência em livro infantil por causa do PNBE. É bom para as escolas e é bom para as editoras, mas vejo uma distorção: muitas editoras que não faziam livro infantil começaram a fazer e abandonaram seus projetos originais. O país não pode viver só de livro infantil. Costumo dizer que o PNBE infantilizou um pouco o mercado editorial.”

Bruno Lerner, 35 anos de mercado e superintendente da Melhoramentos, lamenta a onda do politicamente correto e conta que por causa de um único palavrão em Meu Pé De Laranja Lima, clássico de José Mauro de Vasconcelos, perdeu uma grande venda. Diz também que o equilíbrio entre oferta e procura ainda não é o ideal. “Fazemos um bocado de pesquisa e vemos que esses meninos querem mais histórias centradas no dia a dia deles e nem sempre é o que acaba indo para os programas. Essa distância diminuiu nos últimos anos, mas ainda existe.” A Melhoramentos tem Ziraldo e Ruth Rocha entre seus autores, no entanto investe também em gente nova. “Toni Brandão e Tiago de Melo Andrade são nomes novinhos que foram despontando e já vendem no nível de um Ziraldo em algumas licitações.” Breno credita a escolha de um autor à qualidade de seu trabalho, à divulgação das editoras nas escolas, setor que cresceu muito nos últimos anos, e à disponibilidade do escritor para visitar escolas.

Ilan Brenman, autor do best-seller Até As Princesas Soltam Pum, publicou, em 15 anos de carreira, 50 títulos por diversas editoras, que venderam mais de 500 mil exemplares – muitas vezes um escritor nacional de livro adulto não consegue esgotar a primeira tiragem de 2 mil. Ele não abre mão do contato com as crianças. “O autor infantil e juvenil tem que ir onde os leitores estão. Temos um papel central na formação desses futuros leitores, que acham que escritor ou é velho ou já morreu”, comenta.

“O professor tem que ser leitor”

Mas só o esforço do governo, das editoras e dos autores não garante que o brasileiro seguirá lendo quando acabar os estudos. Segundo a Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, 48% dos leitores estão estudando e 84% dos não leitores já saíram da escola. O professor foi indicado por 45% dos entrevistados como o maior incentivador da leitura. A média de leitura é de 4 livros ao ano.

“Que escola é essa que não consegue criar leitores para a vida inteira e fazer o sujeito sentir que a leitura e a biblioteca são coisas dele?”, questiona Maria Antonieta Cunha, diretora do Livro, Leitura e Literatura do Ministério da Cultura. Como fazer? “É fundamental que a escola tenha moderadores de leitura verdadeiros, que são os que conseguem fazer o olhinho da criança brilhar com a história e passar adiante seu entusiasmo. Depois, é fundamental que o livro responda a esse entusiasmo.” E vale tudo, do clássico à literatura de entretenimento.

Ísis Valéria Gomes, diretora da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), concorda que a raiz da leitura está na escola. “O professor tem que ser leitor e tem que ter o livro na mão porque a criança tem que conviver com o objeto livro”, diz. Mas a formação de professores já é outra história.

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[Maria Fernanda Rodrigues, do Estado de S.Paulo]