Um espectro ronda o jornalismo nacional. Jovens, esqueçam o sossego que hoje se vê nas páginas: Paulo Francis está voltando.
Nascido no Rio em 1930 e morto em Nova York em 1997, aos 66 anos, Francis foi ator, crítico teatral, romancista e comentarista de TV mas, acima de tudo, jornalista.
Tornou-se um articulista referencial no país -polemista admirado e odiado, influente sempre- nos 15 anos em que escreveu na Folha de S.Paulo, de 1975 a 1990.
Uma antologia de suas crônicas no período acaba de ser editada pelo Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.
Organizado e apresentado por Nelson de Sá, articulista do jornal, Diário da Corte contempla as mais notórias facetas de Francis.
Lá estão o crítico cultural antenado e erudito, o satirista do cotidiano, o correspondente que, como ele mesmo gostava de dizer, ajudou a desmistificar os EUA.
Também ressurgem o comentarista político que foi do trotskismo ao conservadorismo, o bufão preconceituoso, o estilista de texto e ideias.
Nelson de Sá selecionou 76 artigos entre os mais de 8.000 textos que Francis assinou em 15 anos de Folha.
Explica que buscou: 1) ser fiel às diferentes fases de Francis; 2) sublinhar sua trajetória política, da esquerda para a direita (elogiava Lula quando o petista surgiu como líder sindical e o desancou quando concorreu à Presidência em 89; com o economista Roberto Campos ocorreu o contrário); 3) reproduzir as polêmicas mais célebres em que ele se envolveu, como os embates com o diplomata José Guilherme Merquior e com o primeiro ombudsman da Folha, Caio Túlio Costa.
Correspondente assistente de Francis em Nova York em 1987, Nelson de Sá lembra que naquele ano o colega registrou numa coluna que o jornal abrira concurso para assistentes dele na cidade. “Aviso desde já aos candidatos que, entre três e seis da tarde, ladro e mordo.”
Na apresentação do livro, o organizador escreve que não, “Francis não latia nem mordia”. Ao contrário, era “carinhoso, quase paternal”.
No posfácio “Paulo Francis contra os jecas”, o filósofo e colunista da Folha Luiz Felipe Pondé relata que lia Francis pelos corredores da USP, “às vezes escondido”. “[…] Ele era o que eu queria ser quando crescesse.”
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Francis contra o mundo
Em 10 de dezembro de 1980, a reportagem de capa da “Ilustrada” registrava a morte de John Lennon, ocorrida na noite da antevéspera. Era assinada pelo correspondente da Folhaem Nova York, Paulo Francis.
A abertura seguia os padrões de uma notícia tradicional: “John Lennon […] foi assassinado à uma hora da manhã (hora de Brasília) de ontem, por um vagabundo, Mark David Chapman, que disparou nele seis tiros de um revólver 38, acertando cinco”.
O autor implodia os limites entre informação, opinião, análise e palpite, num exemplar amálgama narrativo.
Escreveu que os seguranças do prédio “provavelmente, como é frequente em Nova York, estavam bêbados ou dormindo”. Chamava Chapman de “a nova celebridade” e a viúva, Yoko Ono, de “a aventureira japonesa”.
“Todo mundo está faturando […]. É a sociedade de consumo, em seu aspecto mais grotesco.”
Diário da Corte, o título da nova antologia, é como se chamava a coluna de Francis na “Ilustrada”.
Mas, lembra o organizador Nelson de Sá, os textos só saíam sob esta rubrica quando dava na telha do titular, que escrevia em profusão e sobre qualquer tema para todas as seções do jornal (8.000 artigos em 15 anos, média de 1,4 por dia).
Francis já trabalhara no Diário Carioca (como crítico teatral), na Última Hora, no Correio da Manhã, no Pasquim e na Tribuna da Imprensa quando, em 1975, foi chamado pelo então diretor de redação, Cláudio Abramo, para ser correspondente da Folha em Nova York.
As primeiras crônicas eram dominadas por relatos e críticas sobre a sociedade americana. Aos poucos, ele aumentaria o foco sobre temas brasileiros.
A partir dos anos 80, Francis ganhou projeção nacional e apurou a veia mordaz que distinguiria sua carreira.
Mordacidade que se manifestou em embates até com colegas de jornal -entre 89 e 90, após o ombudsman Caio Túlio Costa fazer reparos a um artigo de Francis, os dois travaram uma discussão visceral nas páginas do jornal – e que às vezes beirava a intolerância.
Num artigo em que contava de sua irritação com um garçom “crioulo” em Nova York, escreveu: “Pensei logo numa chibata”.
Fazia previsões apocalípticas sobre políticos e ideias que combatia. Dizia que, se Lula virasse presidente, o Brasil viraria um caos. E que, se os negros tomassem o poder na África do Sul, haveria uma carnificina.
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Francis sobre…
Apocalypse Now – “'La Grande Illusion' de [Jean] Renoir, não é o mais poderoso libelo contra a guerra que o cinema já apresentou. Coppola arrebatou-lhe o cetro. 'Apocalypse Now' é um grande filme, um dos maiores que ja vi, de uma seriedade e consistência que redimem a asneira, o sentimentalismo, a vulgaridade, a constante 'pseudo' de quase tudo que Hollywood faz. É o primeiro filme sobre o Vietnã. O resto não passou de brincadeira ou lixo.”
Andy Warhol – “Outro dia fui almoçar com Andy Warhol. Mais e mais ele parece uma gigantesca barata descascada. […] Sem talento algum, ele é simpático, doce, diz coisas inteligentes”
Glauber Rocha – “Glauber tinha gênio. […] Não há um diretor de cinema no Brasil que nao seja devedor de Glauber Rocha. […] E o amigo, não ouvir mais aquela voz baiana, melodiosa e insistente, sempre indagando, criticando, criando, nos afagando a imaginação e nos excitando o intelecto.
FHC – “Fernando, me dizem, quer até ser presidente. É bonito e simpático. Sempre o achei uma versão revista e melhorada de Francisco Alves, o 'cantor das multidões'. Mas ser presidente? Do Brasil? Nem dado”
Collor – “Collor fala como a gente, isto é, como as pessoas com quem convivo. Os nossos 'ilustres' em geral estariam melhor num circo. É alto, bonito e branco, branco ocidental. É outra imagem do Brasil, com que fui criado, francamente”
Nelson Rodrigues – “Nelson não era um intelectual. Em verdade, abominava o intelectualismo de qualquer espécie, que lhe ofendia as simplicidades primitivas que lhe deram grandeza. […] Nelson, calculamos um amigo e eu, no Rio, escreveu cerca de trinta crônicas. O resto é repetição”
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Francis contra…
Caetano – “Mick Jagger zombou várias vezes de Caetano na entrevista na TV Manchete. O pior momento foi aquele em que Caetano disse que Jagger era tolerante e Jagger disse que era tolerante com latino-americanos (sic), uma humilhação docemente engolida pelo nosso representante no vídeo” (Francis, na Ilustrada de 25/6/83)
“O Francis me desrespeitou. Foi desonesto, mau-caráter. É uma bicha amarga. Essas bonecas travadas são danadinhas.” (Caetano, em entrevista em outubro)
A polêmica motivou uma enquete na Ilustrada: “Quem faz mais a sua cabeça: Paulo Francis ou Caetano Veloso”. Deu Francis, apertado: 10 a 8. Caio Túlio Costa votou em Francis)
Caio Túlio Costa – “Fico imaginando aquela cara ferrujosa de lagartixa pré-histórica se encolhendo às minhas pauladas. […] não posso garantir que se o encontrar não lhe dê uma chicotada na cara ou, não, palmadas onde guarda seu 'intelecto'. Porque é um canalha menor” (Francis, em 22/2/90)
“Todo mundo sabe que Francis chuta dados, distorce fatos e pratica um opinionismo desenfreado […] Quando levado à lona por argumentos lógicos, […] revida com ataques pessoais […] É sua única defesa possível porque não tem como assumir suas invencionices, fruto da preguiça de investigar, pesquisar, trabalhar um pouco” (Caio Túlio, na coluna de ombudsman em 25/2/90)
Merquior – “Canastrão do articulismo nacional (do articulismo e não do ensaísmo: ele não tem a menor ideia do que seja ensaio), espécie de intelectual para intelectualoides, Francis vive injuriando o que ele não tem condições de compreender, e escrevinha com uma teutônica sem-gracice, que não lhe consente sequer a estética do insulto” (Merquior, em artigo no Jornal do Brasil de 5/1/80)
“Vejo que o pivete José Guilherme Merquior está avançando corajosamente de cara contra meu punho […] É justo. Afinal, […] citei Merquior como o pior caráter da geração literária que agora completa 40 anos. Se vendeu a primeira vez por um chá. A última que soube dele, 'esticava lençóis' de certo cavalheiro, que pensava seria ministro de Figueiredo, na esperança de futuras bocas. Sei da vida do pivete” (Francis, na Ilustrada de 25/1/80)
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Francis revê…
Lula – (Antes) (em 11/2/81) – “Lula não é bobo. Chamei-o uma ocasião de o primeiro líder sindical brasileiro da era das multinacionais. Não é outra coisa. […] O apoio a Lula é universal, não no nicho comunista em que querem encaixá-lo, mas no mundo ocidental capitalista desenvolvido, a que o Brasil aspira participar. […] Ninguém quer anarquia. O que Lula pretende é o direito à reivindicação sindical, dentro das leis que permitam e garantam o direito à greve, como arma normal do sindicalismo.” (Depois) (em 23/11/89) – “Lula nos coloca 'au niveau' de Cuba e Nicarágua. É uma besta quadrada. Não sabe de nada do que está falando. Vai usar o dinheiro dos juros da dívida -que não pagamos- para aumentar o salário mínimo dos trabalhadores […] Lula arruinaria o país, nos transformaria em Sudão, numa grande bosta […] Com Lula o dinheiro todo brasileiro já foi ou vai embora. Só quem não puder tirar é que deixará qualquer coisa aí. E as estatais vão falir e a hiperinflação vem.”
Roberto Campos – (Antes) (em 21/11/78) – “Espero que ele [o então presidente Figueiredo] tenha o bom-senso de não nomear o sr. Roberto Campos para o posto financeiro. Ele não está bem, general. Em Londres, me contaram que recebe jornalistas e personalidades inglesas trajando jeans e colares. Me contaram outras coisas também, mas meu jornalismo não é de cor amarela.” (Depois) (em 9/2/85) – “Roberto Campos é um guerreiro. Pouca gente é tão odiada no Brasil. […] Não é um adversário fácil, num debate. Melhora horrores, em pessoa. […] Escrevi coisas brutais sobre Campos. São erradas. Retiro-as. […] Acontece. Nunca tive a pretensão de ser santo milagroso. Corro os riscos que sempre levam a erros”
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[Fabio Victor, da Folha de S.Paulo]