De todo discurso se espera que guarde coerência e produza um sentido compreensível, convincente. Mas em todo discurso há armadilhas e fissuras – e é em torno delas que tem se articulado a obra de Janet Malcolm. Jornalista, ela assina vários livros que se debruçam sobre como histórias são contadas, chegando à conclusão de que o unívoco não existe e que todo relato é, em certa medida, uma ficção – uma versão possível, tão somente, do que seria a realidade. É o que ocorre, por exemplo, em O Jornalista e o Assassino (relançado em 2011) e A Mulher Calada, que ganha nova versão agora (leia abaixo). É também o que se vê no recém-publicado Anatomia de um Julgamento: Ifigênia em Forest Hills.
Em todos eles, a análise do discurso e de seus desvãos ocupa lugar central: o discurso jornalístico, na relação entrevistador-entrevistado (no primeiro); o dúbio discurso das biografias (no segundo); e as estratégias do discurso dos tribunais (no terceiro). Malcolm é há décadas colaboradora da New Yorker, um dos templos do chamado new journalism – gênero cujos extensos textos, fundamentados em vasta reportagem e tratados como peças literárias, muito frequentemente saltam das páginas de revistas para as dos livros. Foi no semanário nova-iorquino que, em 2010, pela primeira vez saiu o relato de Malcolm sobre o julgamento da médica Mazoltuv Borukhova, judia uzbeque, pertencente ao fechado grupo bucarano, originário da Ásia Central, que habita o bairro de Forest Hills, no distrito de Queens. Borukhova e Mikhail Mallayev foram acusados da morte – ela como mandante, ele como assassino material – de Daniel Malakov, ex-marido da ré e pai de sua filha, Michelle, que tinha quatro anos em 2007, quando viu o pai cair baleado num parque.
O relato e a verdade
A narrativa do crime se dava facilmente a ler como matéria literária. Entre os aspectos a sublinhá-lo, estava a vingança como motivo, um tópico da tragédia clássica. A guarda da criança fora dada ao pai pouco antes dos fatos e Borukhova teria matado Malakov, como, na peça de Eurípides Clitemnestra matou Agamemnon, enraivecida pela perda de Ifigênia – daí o título do livro. Se os personagens pareciam saídos da ficção – com Borukhova ao centro, ocupando o espaço do herói trágico que caminha rumo ao seu destino ineludível –, mais uma vez Malcolm vem dissecar o discurso para lembrar que dele não nasce a certeza.
Apoiando-se fundamentalmente na retórica dos personagens, ela procura descrever de maneira analítica até suas próprias impressões. Seu trabalho é tão minucioso que o leitor, gulosamente virando páginas, pode terminar a leitura desencantado, por ter se esquecido que o relato poderia não conduzir à verdade inequívoca.
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[Francesca Angiolillo é editora-adjunta da “Ilustrada”]