O status artístico que as histórias em quadrinhos atingiram no Brasil nos dias de hoje, com a chancela de um termo literário muito chique – graphic novel – e a fundação de selos dedicados ao gênero dentro de grandes editoras como a Companhia das Letras, esconde um passado de lutas históricas, nunca sangrentas, mas sempre renhidas. E um de seus principais combatentes é Álvaro de Moya, 81 anos. Ainda é porque acaba de lançar um livro que recupera historicamente um acontecimento decisivo para os quadrinhos mundiais ocorrido em São Paulo no início dos anos 1950.
A data exata é 18 de junho de 1951. Nesse dia, no Bom Retiro, bairro então de forte presença judaica, foi realizada a Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos. Ou, como escreveu o criador de Spirit, Will Eisner, no texto de apresentação de A Reinvenção dos Quadrinhos – Quando o Gibi Passou de Réu a Herói (Editora Criativo): “Em 1951, no dia 18 de junho, uma exposição de quadrinhos foi inaugurada no Centro Cultura e Progresso, em São Paulo. Foi um ato de grande coragem cultural e de visão, pois naqueles tempos os quadrinhos estavam relegados a um plano inferior no mundo das artes.”
O que a exposição de Moya e sua turma de amigos fez foi levantar a lebre clássica, que as graphic novels não colocam mais em questão: serão os quadrinhos uma forma de arte? Como se não bastasse ser filho bastardo do cinema e da literatura, no início dos anos 50 os quadrinhos eram mal falados em várias frentes, sob a acusação básica de desvirtuar a juventude. O macartismo patrulhou e acossou desenhistas e roteiristas nos Estados Unidos. “Em São Paulo, os padres e os professores perseguiam os gibis. Nas escolas, eles eram recolhidos e queimados no pátio. Era o Fahrenheit 451 dos quadrinhos”, explica Moya, numa referência ao filme de Truffaut, inspirado por sua vez no livro de Ray Bradbury.
Obras-primas nas paredes do Bom Retiro
O que moveu Moya e sua turma, composta por Jayme Cortez, Syllas Roberg, Reinaldo de Oliveira e Miguel Penteado, foi o amor comum e uma paixão de infância pelos desenhos de artistas como Eisner, Alex Raymond (Flash Gordon), Al Capp (Ferdinando) e outros. O grande gol da rapaziada foi conseguir trazer os originais desses ídolos para essa exposição, que nasceu de forma quase irresponsável, como em geral costumam ser as grandes coisas. E tudo começou com um truque.
Na casa dos 20 anos, vivendo de trabalhos mal-remunerados, cujo salário servia integralmente para comprar livros e gibis, a turma inventou um expediente simples que colou às mil maravilhas. Aproveitando o inglês autodidata de Moya, eles escreveram cartas aos ídolos pedindo originais em nome de um certo Studioarte, de logotipo desenhado pelos falsificadores e palavras muito elogiosas, chamando os artistas de artistas, algo que ninguém fazia na época. A primeira carta a chegar no bairro de Santana, no endereço de Moya, fora escrita por Alex Raymond, à máquina: “Meus amigos, agradeço sua elevada opinião a meu respeito como artista.” Raymond encaminhara um pedido ao poderoso King Features Syndicate, que se encarregou de enviar outras preciosidades.
Isso tudo resultou numa exposição extremamente didática e preciosa, apesar do formato simplório de suportes de madeira, cartazes colados com goma arábica e letras desenhadas com capricho. Ali, nas paredes do Bom Retiro, ficaram os originais de obras-primas, como o original de uma página maravilhosa do Príncipe Valente, de Hal Foster. Ou uma prancha de Flash Gordon, datada de 1937. Tudo isso era puro ouro para os rapazes do Brasil.
“Quem atendeu foi a Marylin Monroe”
O livro de Moya documenta toda essa euforia. A exposição ganhou uma ampla cobertura da imprensa, incluindo aí a televisão, que tinha chegado ao país apenas um ano antes. Foi um sucesso polêmico, no entanto. O editor Ênio Silveira, da futura Civilização Brasileira, escreveu numa revista que Moya e amigos eram “inocentes úteis da decadente cultura imperialista ianque”, um clichê de arrepiar os cabelos de qualquer esquerdista. A defesa dos rapazes foi nacionalista: “O que nós queremos dizer é que a história em quadrinhos parece cinema, parece literatura, mas é uma forma importante de expressão e achamos que os jornais e as revistas deveriam publicar quadrinhos brasileiros e colocar a cultura brasileira em suas páginas.” Parecia cinema, parecia literatura, mas era HQ. A exposição não foi a primeira do mundo, mas abriu caminho para o que veria a seguir. Novos nomes surgiriam e Ziraldo e Maurício de Souza, no Brasil, foram apenas dois deles. A turma de fãs capitaneada por Álvaro de Moya continuou no terreno das tiras. Jayme Cortez foi um batalhador do gênero durante décadas. Todos já morreram.
Moya, que também desenhou – e muito bem – os seus próprios quadrinhos, estagiou na CBS americana, voltando de lá com uma ideia mais clara do que fosse fazer uma rede de televisão, algo que ajudaria a implantar na pioneira TV Excelsior. A estadia em Nova York também aproximou Moya de seus ídolos, não só os dos quadrinhos. Ele se lembra, por exemplo, de ter batido à porta do dramaturgo Arthur Miller. “E quem atendeu foi a Marylin Monroe”, ele conta.
Um romance gráfico
Nos anos 60, a convite de Jacó Guinsburg, da editora Perspectiva, Álvaro de Moya ajudou a colocar os quadrinhos no mapa universitário, publicando Shazam!, um marco da coleção Debates, que incluía nomes portentosos como Umberto Eco e Tzvetan Todorov. “Eu via os quadrinhos como um diamante”, diz Moya. “Para iluminar os vários ângulos desse diamante, chamei gente como o apresentador Jô Soares e o psicólogo Ângelo Gaiarsa, além do jornalista Sergio Augusto, todos entusiastas dos quadrinhos.” O livro é ainda hoje uma obra de referência.
Desenhista “fantasma” da Disney no Brasil, ainda nos anos 50, Moya fez muitas capas do Pato Donald. Antes, chegou a adaptar Shakespeare para os quadrinhos, com um traço de artista, e fez charges políticas para o jornal O Tempo. A amizade com Will Eisner durou até a morte do desenhista, em 2005. Eisner, como se sabe, foi o inventor do termo que elevou os quadrinistas do Brasil e do mundo à categoria de artistas quase literatos. Nasceu, segundo Moya, de uma diatribe. Eisner havia se afastado dos quadrinhos ainda nos anos 50, e ao voltar, já na década de 70, desenhou o célebre Um Contrato com Deus, que o editor não conseguiu compreender de primeira. “O que é isso?”, teria perguntado. Ao que Eisner respondeu, lançando mão do velho parentesco entre literatura e quadrinhos e recuperando o antigo orgulho que a exposição dos rapazes de Moya havia ajudado a levantar: “É uma graphic novel.” Ou seja, um romance gráfico, com todas as maravilhosas liberdades que a criação artística tinha o direito de tomar desde sempre.
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[Cadão Volpato é jornalista]