Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Surge o anjo pornográfico

Com divertido espanto, como diria Nelson Rodrigues, leio ou ouço com frequência esta frase sobre ele: “Nelson Rodrigues, que era chamado de ‘o anjo pornográfico’…” E então me lembro de um remoto domingo de 1992, em que, trabalhando no que seria a biografia do homem, passei de novo os olhos por um recorte da revista Manchete, de outubro de 1966, contendo – pela primeira e única vez – a expressão.

Era uma entrevista-relâmpago com Nelson pelo repórter André Kallàs, publicada numa seção da revista chamada “Leitura Dinâmica”, que constava de papos curtos e objetivos sobre um tema que envolvesse o sujeito no momento. No caso, era a proibição do genial romance de Nelson O Casamento, numa medida inconstitucional do ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva, já que não havia censura de livros no Brasil. Nessa entrevista, Nelson se definia: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou e sempre fui um anjo pornográfico.”

Nunca mais

Eu já lera o recorte umas cem vezes e não me ocorrera que ali estava o título que eu procurava para o meu livro. Era o óbvio ululante que eu não conseguia enxergar – e só então enxerguei. Liguei empolgado para Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e comuniquei-lhe meu achado: O Anjo Pornográfico. Em 1992, o uso da palavra “pornográfico” no título não era algo tão tranquilo para um livro. Mas Luiz aprovou-o imediatamente e apenas me sugeriu mantê-lo em segredo até que o livro saísse, o que aconteceu no fim do ano.

Até então, ninguém chamara Nelson de “anjo pornográfico”. E ele próprio nunca mais repetiria a expressão. Mas o título do livro pegou e acabou por defini-lo para sempre.

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[Ruy Castro é jornalista, escritor e colunista da Folha]