O advento do blog e do Twitter e a onda internacional da autoficção marcam um momento essencialmente autobiográfico da produção textual. Nas redes sociais, o eu se torna não apenas um tema, mas uma linguagem para gasto imediato dentro de uma lógica de marketing pessoal. Seus usuários se apresentam como corpos de linguagem, única forma hoje de haver vida: só nos sentimos existir na medida em que possuímos um espaço linguístico próprio no grande rio corrente da internet.
Nesse terreno movediço, a verdade não é o centro, e sim, as teorias sobre o próprio eu, um eu posto num campo de exibições. Assim, mesmo quem rompe com a sociabilidade busca a aprovação. E os índices de audiência – tal como nos meios de comunicação – atraem esses novos indivíduos, divididos entre a existência íntima e a divulgada na web. Todos os que atuam nessa frequência se tornam personagens de si mesmos.
É natural, portanto, que a grande marca da literatura contemporânea seja a autoficção, uma escrita em que o autor aparece de corpo inteiro nas narrativas – com nome, sobrenome, endereço, a turma do bar e alguns até com a conta bancária. Como o individualismo e o exibicionismo são conceitos de um mesmo núcleo, dar-se a ver por escrito, relacionando-se com o público como em um talk-show, é responder a uma cultura que, para o bem e para o mal, se entregou ao entretenimento.
Nem todo diário é íntimo
Se boa parte da atual autoficção não passa de tentativas um tanto desesperadas de afirmar individualidades em uma cultura cada vez mais estandardizada, essa vertente, com certeza, deixará algumas obras-primas que depurarão toda a massa de detritos, pois é esse o processo de evolução das espécies literárias: para haver um grande livro em uma corrente é preciso ter havido muitas obras falhadas.
Tanto nas redes sociais quanto nas narrativas autobiográficas, porém, há pouco espaço para uma linguagem que funcione como verdade total. Essa é uma escrita produzida para o consumo instantâneo, o que leva a um controle dos limites da confissão e da opinião. O destinatário tem poder muito grande, seja para aprovar ou para recusar as recaídas confessionais. E é um destinatário volúvel que, diante da menor contrariedade, deixa de seguir o autor (se for no território livre da internet) ou para de ler o livro – o que significa uma queda de audiência. Não se diz tudo nem nos momentos de temperatura psicológica mais alta nesses textos imediatistas. Assim, quanto mais se trata do próprio eu nas escritas da contemporaneidade mais ele guarda uma face oculta.
É para essa prática mais ácida da escrita de si que continuam existindo os diários íntimos que não se querem divulgados. Nem todo diário é de fato íntimo. Muitos são produzidos como parte da vida editorial do autor e acabam subordinados à mesma necessidade de controlar opiniões ou ao menos de vesti-las com certas roupas.
Sonhos eróticos transgressores
Um bom exemplo desse tipo de prática são os Cadernos de Lanzarote, de José Saramago, iniciados num momento em que ele se tornara uma celebridade (abril de 1993) e publicados logo em seguida (o primeiro volume é de 1994). Saramago defende a sinceridade, mas não escamoteia o caráter construído de suas anotações: “Por mais que se diga, um diário não é um confessionário, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção” (pág. 471). Os diários, nessa perspectiva, não exercem plenamente o seu papel, flertando com a tarefa ficcional.
Os grandes diários não se distinguem por textos bonzinhos, não querem encantar ninguém e não constroem biografias de sucesso. São uma espécie de espelhos perversos nos quais o autor se olha e muitas vezes se assusta com o que vê. Um grande diário é sempre uma escrita contra o autor, momento em que algo descontrolado nele deixa uma imagem impertinente sobre seus comportamentos e sobre os comportamentos alheios. Será, por isso, sempre uma escrita privada.
Militar, político, escritor etnográfico e empresário bem-sucedido no século 19, José Vieira Couto Magalhães (1837-1898) cultivou um cômodo muito secreto. Seu Diário Íntimo (Companhia das Letras, 1998) foi publicado apenas cem anos depois de sua morte. É bem verdade que ficou perdido, mas já ocultava desde a escrita algumas de suas confissões. Entre temas clássicos, como a consciência dolorosa da passagem do tempo, ele revela a contabilidade de seus negócios, os esquemas que o enriqueceram e principalmente a sua vida sexual. Há pequenas descrições de seus encontros com rapazes do povo ou de seus sonhos eróticos transgressores, anotadas em tupi ou por meio de códigos. Esse estudioso dos hábitos de nossos índios (é autor de O Selvagem, 1876) se valeu de uma linguagem selvagem para revelar sua identidade mais secreta, que não era apenas impublicável: não se permitia sequer ser verbalizada nas línguas civilizadas.
Confissão terrível
Outro exemplo desse exercício extremo da verdade está no mais feroz dos diários literários publicados no Brasil: Diário Selvagem (Civilização Brasileira, 2005), de José Carlos Oliveira (1934-1986). Cronista e boêmio, escritor adiado, ele revela toda a acidez de quem não consegue se dedicar só à literatura e se sente frustrado. Fala o que pensa sobre os figurões, vendo Fernando Sabino e o grupo mineiro marcado pela hipocrisia (pág. 33). Jorge Amado seria um bobo; Otto Lara Resende, “pequeno, mesquinho e invejoso” (pág. 83); Manuel Puig, “um belo canalha” (pág. 320).
Isso se agrava quando ele descobre uma pancreatite e começa a ser um “morredor”, sem ter conseguido erguer-se como artista. Cresce então o seu desejo de vingança, plenamente possível apenas no diário: “Eu me vingando de todos, deixando a minha baba neste caderno.” Nesse estágio, megalomaníaco e neurótico, Carlinhos Oliveira faz uma confissão terrível: “Meu pai violentou e matou (ou eu inventei isso?) sua filha mais velha, de 10 anos presumíveis: por neurose de guerra talvez, por alcoolismo certamente, e por luxúria sem dúvida” (pág. 191). Tal revelação dimensiona a força desse espaço de escrita.
Sinceridade incômoda
Mas ele usa o diário contra a própria biografia, revelando-se atormentado sexualmente, sujo (ficava semanas sem tomar banho), depravado e rancoroso. Essas confissões não tinham um destino literário: “Tenho que guardar estes diários numa caixa, cuidando que traças e outros bichos não os destruam […]. O fato de ser escritor faz de meus cadernos fonte permanente de consulta” (pág. 139). Ele pretendia “manipular esses cadernos”, extraindo deles matéria de ficção. Mas não havia a intenção de publicá-los. Daí a sinceridade extrema.
Talvez seja correto dizer, então, que um verdadeiro diário só existe para vir a público depois da morte do escritor. Nestes tempos de busca de aceitação a todo preço, esse é um gênero cada vez mais necessário, pois nele ficariam registradas as avaliações sobre a vida e sobre pessoas próximas, avaliações nem sempre justas, mas nascidas de estados de alma extremados. Podemos até mudar de opinião, mas em determinado momento pensamos isso ou aquilo sobre aquelas pessoas ou sobre nós mesmos. Assim, o diário de fato íntimo deve ser escrito em cadernos, a tinta, para que o autor não possa editá-lo ao sabor das conveniências do momento. É nessa tinta quente e definitiva que reside uma sinceridade incômoda.
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[Miguel Sanches Neto é autor, entre outros, dos romances Chove sobre Minha Infância e Chá das Cinco com o Vampiro. Seu livro de contos Então Você Quer Ser Escritor? é um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom deste ano. Mantém um diário íntimo desde março de 2007]