Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Profissão: curador

É o último dia da Festa Literária Internacional de Paraty e o clima na coletiva de imprensa com os organizadores do evento é dos mais leves. A 10ª edição da Flip correu relativamente bem, sem grandes percalços. Tanto os jornalistas quanto a criadora da Flip, Liz Calder, o diretor-geral, Mauro Munhoz, e o curador, Miguel Conde, sabem disso. Jornalistas fazem perguntas pontuais; a organização apresenta números que confirmam o sucesso de público: 25 mil pessoas estiveram na cidade nos cinco dias de evento e mais 270 mil foram atingidas, de algum modo, pelas iniciativas virtuais, como a cobertura das mesas principais em tempo real no Twitter.

Se não todos, boa parte dos que estão na sala conhece – ao menos de vista – o curador da Flip, Miguel Conde. Afinal, ele havia trabalhado como jornalista d’O Globonas últimas cinco edições do evento. O clima ali não era de estranhamento mútuo. Em dado momento, uma jornalista tenta problematizar e pergunta para Conde: “Você poderia apontar os pontos negativos da edição deste ano, aquilo que não deu certo?” O curador, mesmo em meio a colegas e alguns amigos, prefere não responder: “Isso vocês podem avaliar melhor do que eu.” A resposta, para alguns cautelosa em excesso, talvez traduza o momento por que passa Conde, que na mesma coletiva teve o nome anunciado oficialmente como curador da edição de 2013: na dúvida, é melhor não revelar nada.

Atitude natural, talvez, para um jornalista que naquele momento começava a respirar aliviado pela primeira vez em um ano. “Foi um ano de muita pressão”, confessou, em conversa com o sobreCultura, na qual, como era de se esperar, não adiantou nenhuma novidade sobre a próxima edição do festival. Nas entrelinhas, no entanto, deu algumas pistas de como funciona a sua cabeça de curador e daquilo que se pode esperar de um evento organizado por ele.

Leia abaixo a conversa com Miguel Conde, um bate-papo de pouco mais de uma hora que se deu na última sexta-feira (13), no Rio de Janeiro, numa livraria em Botafogo. Ele fala de sua atuação na festa, analisa a relação da imprensa com o evento e relativiza a polêmica em torno da Granta, conceituada revista britânica cuja edição com os 20 melhores jovens escritores brasileiros foi lançada na Flip e vem, desde então, gerando debate quanto ao seu critério de seleção.

“Acho que o Carpinejar puxou público”

Você tem alguma edição predileta da Flip?

Miguel Conde – Talvez a de 2006. Foi o meu primeiro ano como jornalista, estava começando a trabalhar com literatura, fiquei muito feliz de estar lá. Aquela coisa do primeiro contato. Houve duas mesas que entraram para a história da Flip: a mesa do [Christopher] Hitchens com o [Fernando] Gabeira, que destoou bastante do que é usual na festa – foi uma exposição muito dura do Hitchens. Naquele ano, a mesa da Adélia Prado foi muito surpreendente também. Alguns jornais nem estavam cobrindo, porque foi num domingo e no domingo geralmente fica mais vazio. Foi uma mesa muito emocionante, ela colocou as coisas de um jeito desarmado. Quebrou um pouco aquela coisa de chegar lá com um discurso pronto. Isso emocionou bastante as pessoas.

Deve ser difícil montar a mesa de domingo.

M.C. – É, é um horário meio ingrato, sobretudo o domingo de manhã. Botei o Fabrício Carpinejar porque achei que ia chamar público, e sabia que a Jackie Kay era muito legal. Além de ter lido o livro de memórias dela, tinha lido também o de poemas. Vialguns vídeos, sabia que ela falava muito bem. Mas achava que ela não seguraria sozinha o público. O Carpinejar é uma figura mais conhecida, ajudou, a mesa realmente estava cheia. Acho que o Carpinejar puxou um público ali. E foi bom, porque as pessoas viram a Jackie Kay, uma escritora superinteressante, com apenas um romance publicado no Brasil. Lá fora ela é bastante conhecida. É um caso semelhante ao da Carol Ann Duffy, que veio no ano passado e é poeta laureada do Reino Unido. Muito conhecida lá. Incrivelmente, ela sequer foi entrevistada pelos jornais. E fez uma mesa legal, talvez não tão marcante quanto a da Jackie Kay, mas legal.

“A cobertura de livros está crescendo”

Quando se é chamado para ser curador da Flip, quais são as primeiras providências a serem tomadas?

M.C. – A primeira etapa é o levantamento de nomes. É claro que há aqueles que você sabe que quer chamar de cara. Depois é natural uma rodada de conversa com amigos e com alguns críticos que podem ajudar. Então, obviamente, parte-se para uma rodada de conversa com os editores. Passa-se, sei lá, um mês conversando com gente, lendo coisa, vendo coisas na internet, vendo vídeos importantes. Depois disso, na altura de setembro, começa-se a fazer os convites.

É a segunda vez nessa conversa que você fala de ver vídeos na internet para chamar os autores. É uma prática que os curadores mais antigos não tinham à mão.

M.C. – Pois é. Mas também não é um julgamento definitivo. É claro que a gente pode abrir mão da expectativa de que o autor seja muito eloquente caso ele seja um grande escritor. Quando chamei o Rubens Figueiredo, por exemplo, não esperava que ele fizesse uma fala extremamente desenvolta. Mas, claro, é importante ter uma ideia de como a pessoa fala, né?

A relação da imprensa com o festival chama a atenção. É difícil que se dê no Brasil tanto destaque para um evento de cultura. Depois da festa, no entanto, a cobertura de literatura acaba encolhendo, fica praticamente restrita aos suplementos semanais. Como você vê isso?

M.C. – Seria bom até para a Flip que essa atenção se desse de modo menos episódico. Mas dependeria também de que as feiras que estão se multiplicando pelo país fossem capazes de atrair nomes que chamassem a atenção dos jornais, autores internacionais. Daqui a alguns anos, talvez isso se torne um pouco menos extraordinário. E claro que seria desejável que esse tipo de cobertura de livros se distribuísse mais durante o ano. Mas se formos pensar nos três maiores jornais do país, o movimento em relação à cobertura de livros é inverso ao do resto do mundo: está crescendo.

“É um grande festival de autores”

E como você avalia a qualidade da cobertura jornalística da Flip?

M.C. – A imprensa tem uma relação de muito escrutínio com a Flip, o que é interessante. É uma discussão exaustiva de detalhes, a composição do conjunto de convidados, a avaliação de cada mesa, uma coisa muito minuciosa. Acho que é meio singular essa relação se você pensar em outros festivais do mundo.

Até que ponto sua vivência de jornalista ajudou na curadoria?

M.C. – Como jornalista, o que mais critiquei foram as mediações, que podem afundar um debate. Se não conseguimos resolver completamente essa questão, não tenho dúvida de que neste ano elas foram melhores. Outra coisa que talvez tenha a ver com jornalismo: oferecemos pautas aos jornais com escritores que não são muito conhecidos por aqui, como a Jackie Kay. Antes mesmo da Flip, os poemas dela foram publicados no jornal, ela foi entrevistada…

Você acha que o chamariz de um evento desse porte são os autores, mais até do que as discussões travadas?

M.C. – Sim. É um grande festival de autores. É o que define o interesse por ele. Mas tenho consciência de que o evento pode ser usado para enfatizar assuntos relevantes. Sem dúvida é uma ambição de quem monta uma programação como essa: não quero simplesmente um apanhado de escritores, tento fazer com que certos temas que considero importantes sejam discutidos. Isso nem sempre acontece, mas se tenta, às vezes de maneira bem mais marcada como na mesa de autoritarismo e democracia, em que o tema veio primeiro. Outras vezes você depende da habilidade do mediador, depende muito até.

“O importante é que eles [escritores] estejam ‘na deles’”

Qual foi sua autonomia no processo de curadoria?

M.C. – A grande diferença desse trabalho para o meu no jornal foi a ausência de níveis hierárquicos acima de mim. É claro que existe o diretor do festival, mas a minha relação com ele se dá muito mais na conversa do que na hierarquia. Bom, óbvio que sofro pressão das editoras para que determinados autores estejam na Flip. Mas o importante, e o que no fundo é a grande qualidade do festival, é a possibilidade de o curador definir aquilo tudo de acordo com as suas próprias avaliações. Realmente não tem nenhum nome que tenha estado na Flip deste ano contra a minha vontade.

Você tem contato direto com os escritores em alguma parte desse processo?

M.C. – Antes da Flip, falo mais com os agentes. Durante a Flip, sim, converso com eles. Fico na mesma pousada dos escritores, mas também tento não ficar me intrometendo muito, me apresento, enfim, me ponho à disposição para qualquer coisa. No dia do debate a gente fica no camarim. Tem algumas situações em que você está com os caras. Mas o importante é que eles estejam ali à vontade, “na deles”.

“É importante não falar por falar”

Você tem acompanhado as discussões sobre a seleção da revista Granta? Até que ponto é importante para um autor participar de uma seleção como essa?

M.C. – A Flora Süssekind publicou um artigo há mais ou menos dois anos que falava desse tipo de questão: à medida que se torna escasso o espaço da literatura, a disputa por posições de prestígio se tornam mais agressivas. Estar numa seleção como essa vira mais uma disputa por posições de prestígio do que por um espaço de discussão reflexiva. Apesar disso, há nos últimos anos uma clara ampliação dos espaços de chancela de autores brasileiros: os prêmios literários, os festivais e a própria Flip funcionam também com esse fim. Mas é engraçado como, em certos casos específicos, as pessoas pensam nesses espaços apenas como espaço de chancela, e isso é meio pobre. E claro que um festival como a Flip envolve o reconhecimento do autor, mas a festa quer, sobretudo, propor discussões, temas relevantes, pôr em evidência questões importantes para a literatura brasileira e contemporânea. Tenho impressão de que às vezes existe uma expectativa meio pobre sobre esses espaços, quase como se certos autores sentissem que é uma questão de direito. E a questão passa só por estar lá, e não pelo que está sendo pensado. É claro que a Grantatem um efeito de divulgação no exterior que talvez outras revistas não tenham, mas não sei se faz tanta diferença assim.

Você a acha supervalorizada?

M.C. – Acho que a revista tem de ser entendida como mais um espaço de discussão e de pensamento, não como o panteão dos jovens autores.

Houve quem reclamasse de que neste ano faltou um debate contundente sobre novas tecnologias e autopublicação.

M.C. – Primeiro: acho que não existem temas obrigatórios, né? Autopublicação e novas tecnologias foram temas recorrentes nas edições anteriores da festa. É claro que o desdobramento dessa indústria nos últimos anos trouxe elementos novos para a discussão, então ela pode voltar em breve. Acho que é importante estar atento para que a necessidade de se falar das transformações do presente não se transforme numa ânsia meio vazia de apenas pegar os assuntos do momento. Falar por falar. Na Flip, temos também a obrigação de trazer para a discussão assuntos que talvez não sejam tão do momento, mas que são igualmente importantes.

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[Thiago Camelo, do Ciência Hoje On-Line]