Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Millôr sob nova direção

A agente literária carioca Lucia Riff fala baixo e desliza por eventos culturais, seja a Flip ou a Bienal do Livro, com a timidez de quem pede licença para fazer parte do mundo editorial. Fora os protagonistas deste mundo – os editores e autores, muitos não sabem que Lucia praticamente inventou sua profissão entre nós. A Agência Riff foi a primeira empresa a se denominar agência literária no Brasil e acaba de comemorar um contrato para representar a obra de Millôr Fernandes (1923-2012). Com Ivan Fernandes, filho de Millôr, a agente vai mergulhar na obra tão diversa que desafiou categorização. "Achava que conhecia a produção do Millôr mas continuo me emocionando com o que encontro", diz. Ela não quer destacar obras ou trabalhos inéditos porque a fase atual é de desemaranhar os contratos existentes.

Lucia Riff abandonou a psicologia quando o filho de Clarice Lispector, Paulo Valente, perguntou se ela queria conhecer a lendária agente Carmen Balcells, nos anos 80. A apresentação resultou numa breve sociedade com a espanhola que havia sido instrumental na explosão da literatura latino-americana no exterior, nos anos 60. Hoje, a sociedade da empresa é composta por três Riff's. Lucia é sócia dos filhos João Paulo e Laura que confirmam: a discrição é parte do DNA da agência.

Como foi a aquisição dos direitos da obra do Millôr Fernandes e o que ela representa para a circulação da obra dele entre um novo público?

Lucia Riff – Há tempos que o Ivan Fernandes, filho do Millôr, vem conversando comigo. O agenciamento, tanto neste caso, como no de todos os autores, representa ter os trabalhos bem contratados e respeitados, é uma base para a produção de novos textos e projetos. A obra passa a ter mais visibilidade e, eventualmente, tem chance de ser editada fora do Brasil. Fiz uma primeira tentativa porque já conhecia o Millôr, há alguns anos. Ele foi de uma gentileza enorme, me presenteou com livros, mas percebi o seguinte: ia ser fácil ganhar o amigo, não o cliente. E desisti. O próprio Millôr não via a própria obra como um conjunto que pudesse ser reintroduzido ao público.

O Millôr dizia que obra é coisa de pedreiro. Mas concorda que parte do público jovem pensa que ele foi acima de tudo humorista e artista gráfico, não conhece o poeta, o tradutor e o dramaturgo?

L. R. – Sim! E o fato é que ele não estava acessível, por diversos motivos. Você não imagina como estou sendo inundada de pedidos de inclusão do trabalho dele em livros didáticos, acadêmicos, exposições. Ficou claro que havia uma demanda represada pelo que ele produziu.

O Brasil teve vários casos de tensão de herdeiros com produtores de conteúdo. Como é o papel de Ivan Fernandes neste acordo com a agência e vocês têm um entendimento de quando o uso da obra deve ser negado?

L. R. – Esta conversa costuma acontecer antes de fechar o contrato de representação. O Ivan Fernandes, além de ser um artista, é profundo conhecedor da obra do pai, com quem colaborou, e tem limites claros, como herdeiro. Uma restrição comum que fazemos é para publicidade de álcool e cigarro. Ou, por exemplo, nunca íamos autorizar um uso do poema do Drummond: "E agora, José, acabou o detergente?" O uso comercial teria que ser de bom gosto. O (Luis Fernando) Verissimo, meu cliente, vive recebendo proposta de publicidade para celular. Não há dinheiro no mundo que faça ele dizer sim.

Esforços que chamam atenção para a nossa literatura, como a edição recente da Granta, 20 Melhores Jovens Escritores Brasileiros, ajudam a diminuir a barreira da língua portuguesa no mercado editorial?

L. R. – Tudo o que chame a atenção do Brasil é válido, mas, por enquanto, estamos ainda restritos às vendas bem pequenas, com adiantamentos mínimos, e apenas para editores apaixonados por literatura, mas que não têm a menor expectativa comercial na edição que será publicada. É bem difícil o trabalho com autor brasileiro no exterior. Os editores querem algo tão específico, que chega a irritar! Já li boa parte da Granta e acho que está excelente. Se servir como amostra do que virá – e do que é a nossa moderna literatura, então está muito bom.

Você não fica exasperada, depois de anos de trabalho numa área em que foi pioneira no Brasil, com a noção de que a figura do agente literário é desconhecida entre nós?

L. R. – São quase 30 anos de mercado editorial: abandonei a psicologia em 1983 e fui trabalhar com livros, primeiro numa agência literária, depois na Nova Fronteira e na José Olympio. Fui a todas as Bienais do Rio – desde a primeira, no Copacabana Palace! Até hoje tem gente que me pergunta o que faz um agente literário e fica surpresa de saber que a agência existe desde 1990. Este desconhecimento da mídia é, em parte, culpa minha. Sempre trabalhei nos bastidores. Somos a primeira empresa no Brasil a se chamar agência literária. Durante um bom tempo, as outras agências que atuavam no Brasil não eram empresas. Logo entrei para a Câmara Brasileira do Livro, mas, então, não havia lá entrada para agentes literários então criaram a categoria "Outros". Muitas vezes, fugi de entrevistas, fotos e sempre falei o mínimo possível. Parto do princípio que meu trabalho é confidencial – não posso mesmo contar detalhes sobre negociações, autores, projetos. Mas não faz muita diferença o trabalho aparecer pouco na mídia: o importante é que o mercado editorial nos conhece, no Brasil e no exterior.

Você se lembra de alguma história peculiar quando precisou vencer a resistência de um futuro cliente?

L. R. – Não batalho clientes, na verdade. Eles nos procuram geralmente recomendados por outros autores, por editores, por amigos. Se o autor não topa de primeira, tudo bem, não insisto. Já com as editoras, sim, precisamos quebrar barreiras. Já houve casos de editoras que não tinham o menor traquejo de trabalhar com agentes e ficaram meio perdidas lidando conosco.

Você confirma uma impressão de que o agente literário, dependendo do temperamento do autor, funciona como terapeuta e acaba gerenciando outros aspectos da vida do cliente?

L. R. – Não diria que o agente funciona como um terapeuta, mas, sim, o agente precisa ter muita sensibilidade, tato e paciência não só no relacionamento com o autor ou com os herdeiros, mas também com a editora. Quantas vezes consegui evitar que autor e editor se desentendessem! E pude também poupar o autor de frustrações. Há todo esse outro aspecto do nosso trabalho que vai além de bons contratos e negociações.

Como o papel do agente pode evoluir com as mudanças no mundo editorial, o e-livro, a perda de espaço de editoras, os esforços da Amazon para baratear o livro e patrocinar o self-publishing?

L. R. – Na medida em que o trabalho do agente é diretamente ligado ao autor, apoiando o autor, o trabalho do agente não muda com o e-book: só muda o tipo de contrato que negociamos.

Explique como funciona a representação, no caso de brasileiros e estrangeiros.

L. R. – Representamos 70 autores brasileiros, de clássicos, como Drummond, João Cabral, Quintana, Erico Verissimo, Rachel de Queiroz, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, Sérgio Porto. Entre os contemporâneos, Luis Fernando Verissimo, Lygia Fagundes Telles, Marina Colasanti, Zuenir Ventura, Roberto DaMatta, José Rubem Fonseca. Além dos brasileiros, representamos uma lista expressiva de editoras e agências literárias estrangeiras, como Harper Collins, WW Norton, Little Brown, Hyperion, entre outras. Neste caso, somos coagentes destas editoras e agências, e representantes exclusivos para o Brasil. Um detalhe importante: a representação dos brasileiros para o exterior também funciona na base do coagenciamento: a Agência Riff trabalha em parceira com três agências: Nicole Witt, Anne-Marie Vallat e Jonah Strauss.

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[Lucia Guimarães é jornalista, em Nova York]