Bernardo Kucinski levou 37 anos curtindo seu sofrimento até chegar a K., um dos livros mais singulares da literatura brasileira (Editora Expressão Popular, 2011, 177 páginas). Embora o tempo tenha sido doloroso, foi bom que ele transcorresse. O que podia ser mero jornalismo, ou “apenas” a pungente indignação de quem perdeu por meio violento a irmã, sem lhe saber sequer o destino final, virou alta literatura.
Poucos jornalistas conseguem fazer essa passagem, como a fez Bernardo Kucinski. O conjuntural, o cotidiano, o apelo dos fatos ainda quentes turva ou impede que se dê a ele o toque de perenidade dos tipos ideais, dos modelos, dos personagens, do enredo – do que é um amálgama de ingredientes que só em literatura gera um produto único. Termina-se de ler K. com um sentimento de revolta diante daquela matriz que serviu de rumo para o percurso próprio de Bernardo em busca do absoluto por trás do absurdo.
Se quando sua irmã, Ana, uma jovem professora, doutora em química, casada com um jovem físico da Universidade de São Paulo, ambos militantes em organizações de esquerda, desapareceu sem deixar vestígios, arrastada pelas forças da repressão política do regime militar, em 1974, o patriarca da família Kucinski reagiu como qualquer homem decente e respeitador das leis reagiria naquelas circunstâncias: aguardou pela devolução de sua filha. Ela teria que voltar. Nada fez que justificasse aquela ignomínia.
K.esgota todos os recursos ao seu alcance para entender e reverter a situação lancinante, e nada consegue. Sua impotência diante da barbárie é a mesma do personagem de Franz Kafka, naquela Tchecoslováquia tão distante de nós e tão aproximada pela mesma forma de tirania. Outro elo é mais um martírio de uma família judia, desta vez no cenário de São Paulo.
Maldade humana
Bernardo desvenda o universo das comunidades judias do Bom Retiro (como as dos sírios do Brás ou dos alemães do Brooklin) como se manejasse não um teclado de computador, mas um bisturi.
É o repórter agindo, mantendo suas emoções sob controle para que as coisas aflorem, os personagens se definam, o elemento de universalidade brote de uma situação bem específica. Bernardo quis que a tragédia da sua irmã, que provocou tragédias por toda a sua família, se eternizasse. E conseguiu.
Ele só percebeu essa conquista no curso do drama e durante a realização do livro, que, como a casa onde morou e ainda mora, se tornou “o lugar da totalização das suas lembranças”. Lembranças que têm suas raízes profundas e são fixadas pelo esplêndido traço de Enio Squeff, o ilustrador do livro.
O amor, a solidariedade, o respeito e a admiração se mostram sentimentos mais fortes, capazes de unir os participantes dessa tragédia contra todas as agressões, tornando a família um núcleo de resistência, uma fortaleza sedimentada pelos valores mais nobres.
Jamais o cadáver da jovem assassinada foi devolvido e as informações sobre o seu destino não tinham procedência. Como garantir que ela e sua família não fossem destruídas? Fiel ao elemento de união dos Kucinski, Bernardo, com seu romance, completa a lápide que a irmã indicou antes de desaparecer, conforme ele reconstitui:
“Tempos depois, capturado e desaparecido pelos militares, deixou, como único bem, a biblioteca revolucionária de mais de dois mil tomos, a maioria expropriados. Certamente, na primeira página de todos eles assinaria em letras firmes e rápidas, seu nome por extenso e data da expropriação.
“Queria demarcar uma posse? Não. Não faz sentido. Talvez soubesse, isso sim, e desde sempre, que os livros seriam os únicos vestígios de sua vocação revolucionário, pequenas lápides de um túmulo até hoje inexistente”.
Se o túmulo continua a não existir, K. o substitui e eleva, enlevando a todos nós nessa via crucis reveladora e sublimadora da maldade humana.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]