Entrar num livro com os olhos desarmados de um leitor faz toda a diferença quando se trata de um crítico. E dois novos livros mostram como um leitor pode encontrar em estudos de crítica literária uma experiência tão prazerosa quanto a que oferece uma boa narrativa. Cerca de 20 anos separam as gerações de Manuel da Costa Pinto e José Castello, que reuniram textos dispersos publicados na imprensa em Paisagens Interiores e Outros Ensaios (B4 Editores), de Costa Pinto, e As Feridas de um Leitor (Bertrand Brasil), que Castello lança na Bienal do Livro de São Paulo, que começa amanhã. Ambos têm uma imensa qualidade, a de se deixar tocar pelas obras analisadas. Além disso, compartilham um texto claro, curtido nas redações que frequentaram durante anos.
Castello começou em 1970, estagiando no Correio da Manhã. Trabalhou no Diário de Notícias, no jornal Opinião e na revista IstoÉ. “A experiência com o jornalismo deixou em mim marcas muito profundas”, diz. “Como tudo na vida, fez bem, mas também fez mal ao escritor que sou.” Ele destaca o valor da leveza e da objetividade, além da clareza, que norteiam o jornalismo. O mal está na militância que a profissão exige. “Só consegui escrever meu primeiro livro, O Poeta da Paixão, a biografia de Vinicius de Moraes, quando em 1991 abandonei em definitivo as redações de jornal.”
Costa Pinto ainda milita nas redações. Passou pelo caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo, fundou a revista Cult, assinou coluna na “Ilustrada” e hoje escreve na revista sãopaulo, além de editar o “Guia da Folha”.
Leitor bem equipado
Isso tudo tem a vantagem de aproximá-lo da produção contemporânea. “Mas sempre tive um pé na universidade, onde fiz mestrado em Teoria Literária, e por isso procuro embutir em meus textos algumas questões conceituais que nem sempre aparecem de maneira explícita”, diz. “São questões sobre a representação, sobre a definição do literário, sobre a noção de autoria, sobre as fronteiras entre o ficcional e o não-ficcional.”
Dito dessa forma, parece mesmo uma definição catedrática. Mas o que menos se percebe no livro de Costa Pinto, bem como no de José Castello, é qualquer tipo de ranço acadêmico. Os dois avançam pelas veredas comuns do leitor entusiasmado, e por isso seus livros caem bem, de forma quase surpreendente, num momento em que a literatura brasileira entrou com tudo na festa, mas não conhece nem crítica nem autocrítica. Castello, que costuma publicar os textos também no Valor, sempre foi de uma densidade incomum e o título do seu livro revela tanto a seriedade com que investe na leitura quanto a escolha de seus objetos: ele vai de Juan Carlos Onetti a Valter Hugo Mãe, passando por Vinicius, Mário de Andrade, João Gilberto Noll e Valêncio Xavier, entre muitos outros.
E o crítico tem ideias próprias bem fortes. Assim, por exemplo, escreve sobre Jorge Amado: “Houve, sim, uma apropriação fútil da obra de Amado, que a equiparou aos folders das agências de turismo.” Para acrescentar, em seguida: “Talvez o que não se suporte na literatura de Jorge Amado seja a alegria e também o otimismo escandaloso, aspectos, muitas vezes, associados às ideias positivas do realismo socialista.” Fecha o texto dizendo que Amado escreveu “para celebrar o que a vida tem de melhor”. Ou seja, Castello não segue a cartilha, que costuma subestimar o trabalho do autor baiano, mesmo em seu centenário. Ele exerce a paixão de um leitor bem equipado.
“Fui carregado por uma paixão”
Manuel Costa Pinto tem mais senso de humor, mas não deixa de mergulhar em Dostoiévski e Camus, os densos autores favoritos. “Em seus romances, não existe mundo externo, somente paisagens interiores”, escreve a respeito de Dostoiévski. “Na geografia pessoal de Camus, o Mediterrâneo é aqui”, conclui sobre o diário de viagem do escritor, em que relata a passagem pelo Brasil. “Prefiro a experiência vicária do leitor ingênuo, aquela leitura de quem se identifica com as personagens, de quem gostaria de morar dentro dos romances preferidos”, diz o crítico. Tanto que ele já viajou para Argélia, Praga e Amsterdã atrás dos traços que essas cidades deixaram nos livros de Albert Camus.
Enquanto Manuel se diz apaixonado pela teoria literária – “Estudei e li todas as correntes” –, Castello conta que não é um grande leitor desse tipo de material e também usa a ideia de deslocamento para justificar seu método. “Trabalho como alguém que faz uma viagem ao Oriente e, na volta, escreve a um amigo para relatar sua experiência de viagem. Para mim, a literatura é, antes de tudo, uma aventura, uma viagem pessoal.”
Na qualidade de leitores comuns, os dois críticos também conheceram o lado tenso da profissão. Morador de Curitiba há muitos anos, o carioca José Castello chegou à cidade surpreendido pelo boato de que estaria ali para escrever a biografia de um escritor altamente refratário à exposição: Dalton Trevisan. “Mudei-me para Curitiba por motivos absolutamente pessoais, completamente alheios à literatura. Fui carregado por uma paixão”, explica. Mas Dalton ficou realmente preocupado.
“No corpo a corpo com o livro”
Manuel da Costa Pinto também já comprou algumas inimizades. Seu livro Literatura Brasileira Hoje provocou um certo frisson entre autores que ficaram fora das escolhas do crítico. “De modo geral, só tive problemas com os poetas, o que coloca uma questão: escritores de ficção sempre têm algum distanciamento em relação à matéria narrativa, ao passo que o poeta coincide com sua própria voz”, diz.
Outro atrito célebre em sua trajetória ocorreu na Flip (Festa Literária de Paraty), evento em que Costa Pinto atuou como curador. O escritor e cineasta francês Claude Lanzmann havia sido deselegante com o entrevistador, Márcio Seligmann-Silva, e Costa Pinto saiu em defesa do crítico.
Mas não foi por isso que deixou a curadoria da Flip, afirma. “Eu não tinha a intenção de permanecer, pois o trabalho na Flip acabava me desviando de projetos jornalísticos mais importantes. Voltei para o meu trabalho como crítico e leitor que acredita que a literatura se dá no corpo a corpo com o livro.”
“Meu negócio é mesmo o ensaio”
Apesar das convergências – a principal delas é a capacidade de atrair o leitor com uma visão de dentro, e não excluí-lo –, Costa Pinto e Castello mantêm uma diferença primordial.
Castello já é um romancista do primeiro time, com o premiado Ribamar, um livro que mexe com as fronteiras entre a ficção e a realidade, um pouco como ele mesmo faz em suas críticas delicadas e também incisivas.
Para Costa Pinto, que já cometeu um conto ou dois em antologias de editoras desaparecidas, a literatura foi feita mesmo para ser lida. “Se hoje, de vez em quando, faço anotações para uma possível obra de ficção, logo percebo que há ali uma voz que coincide demais comigo mesmo e que reitera a ideia de que meu negócio é mesmo o ensaio.”
Em ambos os casos, a literatura brasileira sai ganhando.
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[Cadão Volpato, para o Valor Econômico]