“O contraste não poderia ser mais agudo: confortavelmente instalado na sua poltrona preferida, entre as cobertas da cama, ou na rede da varanda, talvez com uma barra de chocolate ao alcance da mão, o leitor abre o volume que reservou para este momento de lazer – e mergulha numa história cujo centro é um crime. Alguém teve sua vida ceifada por um assassino; o cadáver jaz ali, às vezes horrivelmente mutilado, ou com um esgar de pavor a deformar-lhe o rosto. A morte foi inesperada, violenta; o Mal irrompeu e voltou a se ocultar, mas continua à espreita, pronto a se abater sobre outro ser humano.”
O parágrafo acima é o primeiro do instigante ensaio “Por que lemos romances policiais?”, do psicanalista Renato Mezan, incluído na coletânea Escritas do desejo – crítica literária e psicanálise. A descrição serve como uma luva para a última trama do escritor e (também) psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza: Fantasma. Uma vez mais, o já célebre delegado Espinosa, titular da 12ª dp, em Copacabana, no Rio, ocupa-se da investigação de um crime cuja solução envolve uma série de personagens e outros crimes.
Sugestivamente, logo no início do livro, Espinosa (que tem nome de filósofo) está intrigado com a crítica da obra Sobre a teoria dos objetos inexistentes (Alexius Meinong), feita por Bertrand Russell. Estamos diante de um romance policial. O título é Fantasma. O delegado questiona-se quanto à relevância dos “objetos inexistentes”. Seria lugar-comum, não girasse o enredo em torno de uma mala (existente?) que o homem assassinado, chamado apenas de Estrangeiro (mais um fantasma), portava na hora do crime.
A mulher-criança
Ao longo da saborosa trama, evidencia-se que a solução passa pela mala: elemento que liga todos os envolvidos no crime, investigadores e investigados. Mas há ainda outro (e talvez mais fascinante) elemento central: uma moradora de rua conhecida como Princesa. No primeiro dos muitos contatos do delegado Espinosa com Princesa, o narrador a descreve assim: “Sentada com as costas apoiadas na parede do prédio e as pernas esticadas sobre a calçada, a mulher parecia uma boneca de pano de porcelana enorme e gorda, de dimensões inéditas. Estava com um vestido de florzinhas que deixava suas pernas e braços de fora, expondo a pele alva encardida e com poeira acumulada nas dobras de gordura; o rosto redondo e bonito era o de uma mulher de menos de trinta anos, apesar dos dentes maltratados e do cabelo sujo e embaraçado.”
Princesa teria (teria?) sido a testemunha que sobrou para contar a história do crime; história marcada em seu (fantasioso e fantasmagórico) mundo interno, habilmente construído por Garcia-Roza. Daí, como ocorre nas demais tramas protagonizadas por Espinosa, o trabalho investigativo do delegado lembrar o ofício do psicanalista, não porque ele empreende uma psicanálise das personagens ou de si mesmo, mas porque, em um trabalho investigativo, busca reconstruir a história por meio da atribuição de sentidos. Mas a analogia, em Fantasma, talvez seja ainda mais engenhosa. É que a chave para resolver o mistério encontra-se no discurso de Princesa, personagem que não sabe a diferença entre o que viu e o que sonhou, talvez porque a sua existência mesma embaralhe os –supostamente claros – limites entre sonho e vigília, ficção e realidade.
Renato Mezan sugere que o fascínio do leitor por romances policiais é emblema da permanência da “criança em nós”, pois é próprio ao mundo infantil sublimar a curiosidade (sexual), por exemplo, ao viver a sede de saber na busca pela solução de um crime. Interessante notar que esse movimento é também vivido pelos personagens de Fantasma, que se rendem à curiosidade de Princesa, mulher-criança (para sempre) recalcada sob a marquise do mesmo prédio, faça chuva ou faça sol. Mas que, por isso mesmo, como a mala do Estrangeiro, insistimos em perguntar: “Existiu?”
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[Renato Tardivo é escritor e psicanalista, São Paulo, SP]