Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O desconforto dos críticos com as biografias

O primeiro dos três volumes da biografia de Getúlio Vargas, de Lira Neto (Getúlio – 1882-1930. Dos Anos de Formação à Conquista do Poder, 624 pp., Companhia das Letras, São Paulo, 2012), foi acolhido generosamente pela imprensa. Resenhistas de alto nível, destaque, espaço e, sobretudo, boa-vontade marcaram o lançamento, em junho passado (ver aqui).

O caso de Olga, de Fernando de Morais, foi diferente: a espetacular repercussão 27 anos atrás (1985) deveu-se, sobretudo, à entusiasmada capa de Veja, então engajada na modalidade de criar o “livro do ano” mesmo com o ano mal começado. O resto da imprensa foi na onda com igual empenho. Não chega a ser uma biografia clássica, falta-lhe talvez o indispensável suporte psicológico, em compensação oferece um trepidante e trágico relato sobre a figura central que sai do livro direto para o panteão nacional.

Entre a biografia do caudilho gaúcho – que praticamente entregou a militante judia nas mãos da Gestapo – e a da sua vítima, é preciso registrar a trilogia biográfica de Ruy Castro publicada nos anos 1990 e protagonizada por Nelson Rodrigues, Mané Garrincha e Carmen Miranda. Sucessos editoriais extraordinários e não apenas pela fama dos personagens, mas pela habilidade do biógrafo em ressuscitá-los com um fantástico arsenal de informações. Muito contribuiu para isso sua convivência com o biografismo americano, legítimo herdeiro do britânico, seguramente a matriz do gênero.

Histórias de vida

O que chama a atenção na fortuna crítica do primeiro tomo de Getúlio é a falta de naturalidade dos resenhistas, sejam eles historiadores, politólogos ou mesmo jornalistas – portanto confrades – com a profissão do autor, jornalista consagrado com 25 anos em redações.

“Biografia jornalística”, “estilo jornalístico”, “pesquisa jornalística” são expressões que, embora em contextos inequivocamente elogiosos, não disfarçam uma atitude diferenciadora. Não chega a ser preconceito ou discriminação, é apenas uma caracterização, porém absolutamente desnecessária. E reveladora.

Qual seria a diferença entre uma biografia sem hífen nem aposto adjetivo e uma biografia “jornalística”? Uma narrativa é eletrizante ou fascinante qualquer que seja o ofício anterior do narrador. Esta falta de naturalidade decorre de antigas incompreensões no tocante à definição do que é biografia e tem a ver com uma obsessão classificatória, “científica”, que no mundo multidisciplinar de hoje não faz qualquer sentido.

Historiadores preferem empurrar biografias para o escaninho da literatura, mesmo quando fundadas em rigorosa pesquisa documental. Na área dos estudos literários, as biografias são direcionadas para a esfera jornalística e mesmo nesta, sobretudo quando se trata de biografias de escritores, são carimbadas como literatura.

Tantos cuidados, segregações e segmentações já deveriam ter sido eliminados há muito tempo. Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981) foi repórter, homem de redação e autor de uma vintena de histórias de vida (além de dramaturgo, contista e ensaísta), mas suas biografias jamais foram acondicionadas em um subgênero. Algumas provocaram fortes emoções (caso de Rui, o homem e o mito, que ousou questionar a infalibilidade de uma glória nacional com dados rigorosamente pesquisados), não porque era jornalista, mas porque fez o dever de casa de qualquer biógrafo – questionar o biografado. Numa sociedade tribal como a nossa, a biografia geralmente segue os cânones da hagiografia.

Já o crítico literário Eloy Pontes (que assinava sua coluna em O Globo como E.P.) escreveu nos anos 1930 e 40 uma série de biografias com títulos apelativos (A vida Inquieta de Raul Pompeia, A vida dramática de Euclydes da Cunha, A vida contraditória de Machado de Assis etc., etc). Ninguém o enfurnou numa categoria; eram apenas medíocres.

Álvaro Lins, Gilberto Freire e Luiz Viana Filho teorizaram sobre as histórias de vida e lhes conferiram um status definido, sem qualquer downgrading depreciativo ou despectivo: são obras plenamente literárias e plenamente historiográficas. Jornalísticas apenas se o seu lançamento obedeceu a algum impulso relacionado com a atualidade. [Mais recentemente Sérgio Vilas Boas ofereceu dois estudos sobre a biografia contemporânea brasileira: Biografias & Biógrafos e Reflexões sobre a escrita da Vida.]

A jornalista Judith Lieblich Patarra preferiu designar o seu Iara como “reportagem-biográfica” – a modéstia é injustificável porque a trágica história da psicóloga e militante política Iara Iavelberg nada fica a dever em matéria de densidade às biografias de Fernando Morais e de Ruy Castro.

Literatura sob pressão

Exemplo dos estranhamentos e implicâncias que envolvem os estudos sobre o biografismo no Brasil é oferecido pela emérita professora da USP Walnice Nogueira Galvão, em “A biografia e o novo biografismo”, publicado na Revista da Biblioteca Mário de Andrade (nº 67, 2011), versão atualizada do texto “A voga do biografismo nativo” (Estudos Avançados, set/dez 2005), por sua vez adaptada de um ensaio na Folha de S.Paulo” (“Heróis do nosso tempo”, 5/12/2004).

Em cada uma dessas versões, recortes diferentes, sempre restritivos, visivelmente ideologizados – ora os biógrafos são confinados num gueto porque seus protagonistas são judeus (as primeiras biografias de Lira Neto eram de cearenses ilustres e ninguém o discriminou por isso), ora não são “de esquerda”, ora as biografias literárias “são mais eruditas”, ora estão colocadas ao lado de romances-reportagem e depoimentos pessoais. A Ilha, de Fernando de Morais (1976) sobre Cuba, é apontada como paradigma do novo biografismo porque é a biografia de um país. O que é isso, companheiro, de Fernando Gabeira, é apontado como carro-chefe de uma segmentação do memorialismo – o político em contraposição ao memorialismo “de alto nível estético” (Pedro Nava).

Evidencia-se a falta de serenidade para avaliar a contribuição dos jornalistas ao novo biografismo brasileiro e isso, evidentemente, terá que ser feito por alguém que conheça não apenas o dernier-cri das teorias literárias, mas também as técnicas da reportagem, da entrevista, das remissões, dos desdobramentos factuais e o manejo do contraditório. Só assim será possível tirar da biografia seu ranço beletrístico para convertê-la numa harmoniosa combinação de literatura, historiografia e jornalismo.

Falta, sobretudo, a compreensão de que a saudável incursão de jornalistas no gênero biográfico decorre principalmente do empobrecimento do jornalismo impresso. A imprensa americana reagiu à TV com o New Journalism (que Gabriel García Márquez, ele também oriundo de uma redação, chama de Jornalismo Narrativo e outros de Jornalismo Literário). A solução brasileira foi, como sempre, mais sofrida, solitária e mais criativa: barrados da grande imprensa foram lutar em outra trincheira, a revitalização da biografia.

No momento, importa registrar que o recém publicado tomo I de Getúlio, de Lira Neto, é uma biografia maiúscula: um Bildungsroman, romance de formação, e, apesar do nome, uma elaborada reconstrução dos tempos, ideias e eventos que marcaram a vida do político que, 58 anos depois de sua morte, continua impondo seus paradigmas à cena política nacional.

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A brevíssima epígrafe desta monumental biografia (“Sou contra biografias”) é um achado literário, não tem nada de “jornalístico”. É coisa de narrador experimentado que mais tarde irá comprovar o contrário: Vargas adorava biógrafos e elogios.

Jornalismo é literatura sob pressão, escreveu o grande crítico e ensaísta Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima). Seus herdeiros não compreenderam o que isso significa.