Depois que Senhor, a revista mais ambiciosa e sofisticada de sua época, deixou de circular em 1964, tornou-se um lugar comum dizer que fora lançada antes de seu tempo e que o Brasil não estava preparado para uma publicação tão avançada. É possível, porém, que nem naquela época nem posteriormente uma revista mensal com o requinte e o cuidado gráfico – além da excelência do conteúdo – da Senhor fosse economicamente viável no longo prazo. Seu lançamento se deveu à iniciativa de um mecenas, mas sua subsistência no longo prazo dependia de outros mecenas que a subsidiassem de maneira desinteressada. E esses mecenas não apareceram.
É certo que outras revistas mensais foram lançadas posteriormente e tiveram êxito. Mas não tiveram a mesma ambição. Realidade foi uma delas. Vendia centenas de milhares de exemplares por mês – muito além do que sonhara a Editora Abril, que a lançou. Mas se tratava de uma revista com foco diferente. Enquanto Senhor era uma publicação atemporal, com ênfase na literatura e pouca preocupação com os acontecimentos imediatos, Realidade dava ênfase a reportagens sobre temas do momento.
A piauí segue mais de perto o modelo da Senhor, na qual parece ter se inspirado parcialmente, sobretudo no cuidado com o texto, no humor e leveza que permeiam suas páginas e na criatividade das capas. Mas são publicações bem diferentes. piauí não apenas optou por uma apresentação gráfica muito mais sóbria, até o ponto da austeridade, com um papel que parece emprestado por um jornal, como editorialmente priorizou as reportagens de assuntos atuais, embora não falte ficção de bom nível. Outra diferença é o elevado número de anúncios, em comparação com a Senhor. O êxito da piauí sugere que uma revista mensal de qualidade para uma minoria, desde que muito austera, pode ser viável – com a ajuda discreta de um mecenas.
Houve também uma tentativa, ainda em 1964, de lançar uma publicação sofisticada para o mesmo público da Senhor, a revista Finesse, mas durou pouco tempo. No ano seguinte, Paulo Francis renovou a revista do Diner's como uma “míni-Senhor”, também de vida efêmera. Uma nova publicação foi lançada na década de 1980, pela Editora Três, com o nome de Senhor. Era semanal e tinha a britânica The Economist como modelo, sem nada que lembrasse a Senhor original, além do nome.
Time de peso
A primeira Senhor circulou durante cinco anos, de 1959 a 1964. Seu fechamento foi lamentado por grande número de leitores fiéis e tornou-se objeto de veneração para as gerações seguintes, resultado, talvez, de uma tradição oral, pois dificilmente tiveram algum contato com a revista. As raras coleções alcançam nos leilões “preços inacreditáveis”, segundo um antigo colaborador.
Uma seleção do conteúdo da revista, O Melhor da Senhor, foi lançada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. É uma edição bem editada, bem cuidada e bem impressa. A concepção e coordenação são de Maria Amélia Mello e a organização, de Ruy Castro. O exemplar é acompanhado de uma publicação explicativa, “Uma Senhora Revista”, que mostra como era e foi feita a Senhor. É provável que os 2 mil exemplares impressos sejam insuficientes para atender a demanda.
Maria Amélia Mello escreve que, à procura dos 59 exemplares da revista, peregrinou em vão pelos sebos durante anos a fio. Com uma persistência de décadas e a ajuda de amigos, conseguiu completar uma coleção, que, segundo ela, pouca gente tem e que não se encontra em nenhuma instituição.
A ideia da Senhor surgiu no fim de 1958. Nahum Sirotsky, que perdera o emprego de editor-chefe da Manchete, pensava em lançar, junto com Alberto Dines, uma revista semanal na linha da americana US News & World Report. Conversou com Simão Waissman, da Editora Delta Larousse, que pretendia publicar “a mais interessante revista brasileira de todos os tempos”. Queria prestígio. Precisava impressionar os franceses da Larousse. Sirotsky, com a ajuda dos pintores Carlos Scliar e Glauco Rodrigues, apresentou a Waissman o projeto de uma revista mensal.
Era uma publicação pouco definida. O projeto se inspirava na Esquire, The New Yorker, Fortune, Playboy e até na francesa Realités. Feita para o homem urbano, queria também fisgar a mulher. Cuidaria de cultura, política, economia, entretenimento, serviços, comportamento social. Dava ênfase à literatura, publicando uma novela completa e um ou dois contos, e à arte, com obras e ilustrações originais. Prometia ensaios fotográficos de belas mulheres sensuais, quase sempre vestidas, e um tom coloquial, intimista, sério mas bem-humorado. Uma revista sem ideologia, que respeitasse a de seus colaboradores – de Carlos Lacerda e Roberto Campos a Francisco Julião –, escolhidos pelo talento, e que dava mais importância aos ensaios que às reportagens. E de uma excepcional qualidade gráfica. O projeto refletia o otimismo do momento, o acelerado crescimento da economia, a euforia da industrialização, da construção de Brasília, dos “50 anos em 5” prometidos pelo presidente Juscelino Kubitschek. Foi aprovado.
Sirotsky, editor-chefe, teve como editores assistentes Paulo Francis, que cuidava da área cultural, e Luiz Lobo, com funções de secretário e encarregado das matérias de serviço e comportamento social. No departamento de arte, Scliar, Glauco Rodrigues e Jaguar. A revista pagaria a seus jornalistas e numerosos colaboradores acima da média do mercado.
Dominical, aos sábados…
O primeiro número apareceu em março de 1959, com uma extraordinária oferta visual: a atraente capa de Glauco Rodrigues, o ensaio fotográfico de Salomão Scliar e as irreverentes charges de Jaguar. Para ler: um romance de Hemingway, As Neves do Kilimanjaro” um conto da então pouco conhecida Clarice Lispector, “A Menor Mulher do Mundo”; um ensaio de Carlos Lacerda, que, muito diferente de suas inflamadas catilinárias para a Tribuna da Imprensa, escrevia sobre rosas; um artigo de Otto Maria Carpeaux sobre o romance policial, “Os prazeres do crime”. Não havia nada parecido na imprensa brasileira.
Mas na redação ninguém gostou. Luiz Lobo disse que “estava sem cara de revista massuda”, Sirotsky assegurou que teve um ataque de choro: “Não era o que eu imaginara”, pois, segundo ele, ficara pesada e tinha demais de tudo.
Se a redação não gostou, os leitores sim. A revista era feita para homens prósperos, que tinham carro novo, hábitos sofisticados de consumo e viajavam de avião. Eu, estudante, não me encaixava nesses requisitos, mas como, felizmente, o jornaleiro não pedia credenciais, comprei um exemplar na banca e me senti imediatamente atraído pela Senhor.
A começar pela “Carta de Londres”, de Telmo Martino, com um panorama da cena cultural inglesa. Eu já lia a crítica de teatro de Kenneth Tynan toda semana no The Observer e o considerava o melhor crítico da época, mas os comentários de Telmo Martino me surpreenderam pela agudeza. Depois de dizer que Tynan era o crítico que aterrorizava reputações e interrompia vaidades com uma frase nevrálgica, observou que muitos se queixavam de sua parcialidade, pois sempre via as peças da mesmíssima poltrona, cuidadosamente colocada à esquerda de qualquer teatro, e que era daqueles que só dão valor a uma estátua quando dela jorra um fio d'água e sacia a sede do viandante. Para muitos mais, porém, escreveu ele, essa era exatamente a responsabilidade de sua crítica.
Eu não lera nada dele antes e nem sabia quem era Telmo Martino, mas sua “Carta de Londres”, o primeiro texto que li no primeiro número da Senhor, me predispôs de maneira favorável para encarar o resto da revista. Relendo-o de novo, para esta resenha, não senti o mesmo entusiasmo que me provocara há mais de 50 anos. Está no O Melhor da Senhor e, se não for muita ousadia, o recomendo como exemplo de crônica perspicaz e bem escrita, embora sobre pessoas e episódios dos quais pouca gente hoje se lembra. A “Carta de Londres” abria a “Sr. & Cia.”, talvez a melhor seção de notas curtas e não tão curtas da imprensa. A seguir vinham a novela, os três contos, os artigos e crônicas e, ao longo de toda a revista, os desenhos e as charges de Jaguar, que de tão cáusticas podiam ser corrosivas. Hoje são tão ferinos como naquela época.
Guardei a primeira edição, assim como as que se seguiram, e fiquei com a coleção completa da Senhor. Pelo menos era o que eu achava até que, poucos dias atrás, ao pegar O Melhor da Senhor, percebi que minha coleção só vai até o número 49, faltando dez edições para estar completa. Mais uma ilusão perdida.
Nos números seguintes, as elegantes capas de Glauco Rodrigues, a mesma dose de ficção, com novelas de Tolstói, Jorge Amado, Faulkner, Scott Fitzgerald, Kafka, Thomas Mann, Truman Capote, D. H. Lawrence, Camus, Aldous Huxley, Ionesco, Tibor Déry; contos e colaborações de Clarice Lispector em quase todas as edições, de Guimarães Rosa, Marques Rebelo, James Thurber, Hemingway, Orígenes Lessa, Mário de Andrade, Dorothy Parker, Moravia, Isaac Babel; textos de Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, José Guilherme Merquior, Bertolt Brecht, Millôr, Sartre. A revista colocou vários autores no mapa literário e consolidou a fama de outros.
Tinha também análises inteligentes da política internacional, num país pouco acostumado a elas, e matérias, algo cansativas, de economia. Muito texto de Luiz Lobo, sobre serviços, trivialidades e comportamento; de Paulo Francis (e Franz Heilborn, seu alter ego) sobre teatro e literatura.
A revista, segundo Lobo, chegou a ter 45 mil assinaturas, número impressionante para a época – hoje, a circulação paga da piauí é de 35 mil exemplares.
Na época, tive a impressão de que a Senhor, carioca, não dava a atenção devida ao movimento cultural de São Paulo, impressão reforçada pelo comentário de Paulo Francis de que o “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo tinha pouca vida e um tom solene professoral-provinciano. Para outros – nos quais me incluo – foi o melhor suplemento literário da imprensa brasileira, superior inclusive ao “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, que, segundo Rubem Braga, acho eu, era o único suplemento dominical do mundo que circulava aos sábados. Revendo a coleção, é possível encontrar intelectuais paulistas, como Paulo Emílio Salles Gomes, Brito Broca, Décio de Almeida Prado (sobre futebol!), Clovis Garcia, Oscar Pedroso d' Horta. Corrigi aquela impressão, mas apenas parcialmente; ainda acho São Paulo pouco representada na Senhor.
Circunstâncias parecidas
A revista tinha seus pontos fracos. As ilustrações eram atraentes, mas Scliar e Glauco Rodrigues, pintores com pouca experiência em artes gráficas, não conseguiram acertar na tipologia, excessivamente variada e nem sempre adequada. Faltou à Senhor o equilíbrio tipográfico e a legibilidade que Amilcar de Castro estava dando ao Jornal do Brasil naquela época. Tinha falhas de revisão. Mais chocante era a tênue barreira entre a publicidade e o conteúdo editorial, que era pulada com alguma frequência. Várias matérias e notas eram anúncios mal disfarçados, prática certamente ditada pela necessidade de aumentar a receita para alcançar a despesa.
Esse desequilíbrio no orçamento levou a Editora Delta, cansada de perder dinheiro e já tendo obtido o prestígio procurado, a vender a revista às Listas Telefônicas Brasileiras. Sirotsky, que não obteve dos novos donos a liberdade editorial a que estava acostumado, deixou o cargo. Quem o sucedeu como diretor da redação foi Odylo Costa, filho, colaborador desde o primeiro número, e quem iniciara as reformas do Jornal do Brasil, mas que na Senhor, segundo Francis, era peixe fora d'água. Nove meses mais tarde, foi substituído por Reynaldo Jardim, que depois ficaria com a revista e com as pesadas dívidas que a levaram a mudar de rumo para tentar sobreviver e que, no fim das contas, a inviabilizaram. O último número circulou em janeiro de 1964.
Uma revista de elite, nascida com o espírito da era de JK, Senhor não teve muitas chances nos conturbados tempos de João Goulart. Quando foi lançada, a Delta queria uma revista de alta qualidade e que se pagasse. Teve qualidade, mas nunca se pagou. Poucas vezes uma publicação foi tão chorada e lamentada.
O Melhor da Senhor dá uma boa ideia do que era a revista, mas não é um fac-simile preciso das páginas originais. Se as ilustrações são reproduzidas fielmente, quase todos os textos são publicados com tipologia e diagramação diferentes, para facilitar a leitura. O papel também é diferente, menos encorpado e mais branco, e as páginas são de tamanho ligeiramente menor.
A seleção de textos e ilustrações de O Melhor de Senhor é excelente. Além de escritores conhecidos, o leitor pode encontrar nomes como o do excelente humorista João Bethencourt, hoje praticamente olvidado. Ruy Castro explica a ausência de Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues e James Thurber por faltar a autorização necessária. Mas senti falta do artigo de Carlos Lacerda, “Uma rosa é uma rosa”; de algum escrito de Sérgio Jockyman; do texto de Rubem Braga sobre a V Bienal de Arte de São Paulo, em que se revela um sensível crítico de arte; da entrevista de Paulo Francis com Graham Greene; de mais notas das seções “Sr. & Cia.” e o “Balaio”. Mas são apreciações subjetivas.
A releitura acabou com a imagem que eu tinha de Don Rossé Cavaca (José Martins de Araújo Jr.), cujas tiradas costumava admirar na Tribuna da Imprensa; ou eu mudei muito ou o tempo fez com que seu humor ficasse datado.
Ainda hoje, é admirável a ousadia que foi a Senhor. Esta coletânea mostra que havia talento para fazer, num país do Terceiro Mundo, uma revista gráfica e editorialmente à altura das melhores do Primeiro Mundo. E também que faltou vontade, no mundo empresarial e publicitário, para apoiá-la, e mecenas para sustentá-la. Circunstâncias que, meio século depois, aparentemente, pouco mudaram.
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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]