Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando a imaginação abre novos paradigmas

Uma avaliação cuidadosa da crítica aos grandes romances dos últimos quatro séculos e meio elege o estilo como o principal divisor qualitativo entre os maiores nomes da literatura mundial. O jornalismo aparece como um elo comum entre os principais deles, como na Rússia tzarista de Leon Tolstoi (Guerra e Paz), nos EUA de Ernest Hemingway (Adeus às Armas), no Brasil de Euclides da Cunha (Os Sertões), na Colômbia de Gabriel García Márquez (Outono do Patriarca), no Peru de Mário Vargas Llosa (Tia Júlia), ou na Guatemala de Miguel Ángel Asturias (O papa verde).

Na área jornalística, o que sempre distinguiu os modelos de formulação dos enfoques para o exercício do jornalismo entre os jornalões nacionais dos EUA e da Europa foi a angulação das matérias. O que constitui o lide nos do primeiro bloco (EUA e países com jornalismo influenciado pelo americano), com as respostas das cinco perguntas básicas no primeiro parágrafo (o que, onde, como, quem, por que), praticamente se opõe nos do segundo bloco, tornando a formulação leve, flexível, solta.

Outra revelação: depois da criação e publicação do primeiro jornal em língua portuguesa sem censura por Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774-1823), que funcionou de 1808 a 1823, originou-se do jornalismo uma grande parcela daqueles que transformaram o escrever sem uma arte, um modo de vida, de sobrevivência, uma profissão e até um modo de ingressar no mercado ou de fazer política.

Dúvida atroz

Data de 59 a.C. a criação do primeiro jornal do planeta, Acta Diurna, no império romano de Júlio César. Nasceu ali um padrão de cobertura que se estendeu séculos afora: a instalação de correspondentes por diversas regiões de Roma. Com a regionalização da cobertura, o imperador ganhava informações, que chegavam sob a forma de atas, dos lugares mais diversos do império.

Tardiamente, o Correio Braziliense ou Armazém Literário, seria lançado em Londres, em 1808, por Hipólito da Costa. Embora em vários países o jornalismo tenha sido o ponto de partida para romances a retratarem mudanças sociais comuns às rupturas no interior da sociedade, como em Vermelho e o Negro, de Stendhal (1783-1842), a impressão do Correio Braziliense foi um trabalho praticamente solitário de Hipólito, não atraindo a participação de grandes nomes da literatura portuguesa, já influenciados por Lusíadas, por exemplo.

Quem surgiu primeiro? A galinha ou o ovo? O jornalismo ou a literatura? Essas indagações se repetem, acaloradamente, ao sabor dos debates ao longo do tempo. Há dois casos notáveis que não podem deixar de ser lembrados: nos EUA, Ernest Hemingway, de Adeus às Armas (1929), e no Brasil, Euclides da Cunha, de Os Sertões (1902).

O maior romance brasileiro

Em Grande Sertão: veredas (1956), Guimarães Rosa dá um profundo mergulho linguístico no interior de Minas com a mesma profundidade do detalhismo humanístico de Euclides. Em Rosa, inova-se o entendimento de uma linguagem peculiar a um universo-síntese da historia de um povo, como numa pesquisa antropocêntrica – vestígio encontrado em menor intensidade, porém não em menor escala, emSagarana (1946 ).

Em Euclides, a veia jornalística do grande prosador se estende à historia e à geografia – na verdade, é outro olhar sobre a vida em Canudos. O interesse do repórter Hemingway por literatura se inspira na primeira grande guerra de 1917. Mas data de 1926 a publicação do romance O sol também se levanta, que se originou de um artigo encomendado pela revista Life. O artigo deveria ter 10 mil palavras, ele acabou produzindo 120 mil, publicado em capítulos. Por quem os sinos dobram (1929), romance de Hemingway inspirado na Guerra Civil espanhola, é citado por Fidel Castro como modelo de mobilização a conduzi-lo a criar táticas de guerrilha para a conquista do poder em Cuba.

Ao cobrir a Guerra dos Canudos de 1896-97 no sertão da Bahia, para o jornal paulista O Estado de S.Paulo, Euclides da Cunha volta para a redação e inaugura um estilo mais digressivo, dissertativo com relatos detalhados da complexidade social da região, das relações das autoridades locais com o governo. E conclui que apesar de tudo “o sertanejo é um forte” sem a concisão que consagraria bem depois Graciliano Ramos com seu clássico Vidas Secas. A série de reportagens de Euclides se constituiria seguramente o maior romance brasileiro, politicamente mais consistente, de todos os tempos.

Questionamento humanístico

Esses dois casos são exemplos comuns porque, com suas abordagens humanas, os livros são consequência de excelentes reportagens e artigos. Os livros emprestaram permanência historiográfica aos fatos narrados. Não parece ter ocorrido preocupação dos seus autores em criar estilos para imortalizar seus textos.

Esse não é o caso de Gabriel García Márquez em seu Cem anos de solidão, romance-marco de invenção de um novo estilo, o realismo fantástico, que vai além do redimensionamento da hipérbole. A consagração desse estilo celebra o aparecimento de inúmeros seguidores, cuja maioria não chega nem perto da verve criativa do colombiano, embora existam narrativas de alto nível imaginativo como O Papa Verde, de Miguel Ángel Asturias (Nobel de 1967), outro autor de numerosas reportagens interessantes publicadas em vespertinos da sua terra, a Guatemala.

A simbiose entre o jornalismo e a literatura é o mesmo mecanismo a conduzir o peruano Mário Vargas Llosa a ser celebrizado com o Nobel de Literatura em 2010. No rastro de sua obra, está o jornalismo como base do seu questionamento humanístico. E isso o leitor encontra desdeTia Júlia aPantaleão e as visitadoras.

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[Reinaldo Cabral é jornalista, Maceió, AL]