“Recentemente, uma campanha movida no Brasil contra a obrigatoriedade do diploma acadêmico para o exercício do jornalismo indicou até que ponto os pragmáticos chegam em seu desprezo pela teoria. Eles consideram que a simplicidade das técnicas jornalísticas dispensa uma abordagem teórica específica e uma formação especializada.”
A atualidade do comentário de Adelmo Genro Filho, no prefácio de O Segredo da Pirâmide. Para uma teoria marxista do jornalismo, já bastaria para demonstrar a oportunidade do relançamento deste livro, editado originalmente em 1987 e que, desde 2000, só estava disponível no site que reúne a obra do autor.
Adelmo apontava, já na época, a defasagem entre a atividade jornalística e as teorizações a respeito dela, que oscilavam “entre a obviedade dos manuais, que tratam apenas operativamente das técnicas, e as críticas puramente ideológicas do jornalismo como instrumento de dominação”. Curiosamente, como apontou o professor Pedro Osório em debate realizado cinco anos atrás, o próprio livro de Adelmo foi pensado inicialmente como um manual, voltado para o atendimento de uma demanda acadêmica do então nascente Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Mas ele, diz o professor, jamais “produziria um manual, ou algo parecido, sem posicioná-lo em uma determinada concepção de mundo”, pois “não concebia atividade humana que não transitasse pela filosofia”.
Desenvolvendo no mestrado em Ciências Sociais nessa mesma universidade as reflexões já acumuladas em alguns ensaios, Adelmo acabou escrevendo uma obra que se tornaria referência indiscutível para a pesquisa em jornalismo, embora – como costuma ocorrer com trabalhos teóricos nessa área – não tenha, ainda, conseguido influenciar a prática profissional, tradicionalmente resistente a questionamentos dessa ordem.
Uma forma específica de conhecimento do mundo
Adelmo oferece uma abordagem absolutamente original para os estudos de jornalismo ao enfocar essa atividade a partir da perspectiva marxista, “que toma as relações práticas de produção e reprodução da vida social como ponto nodal da autopromoção humana da história”. Só aí já se poderia perceber a fundamentação com a qual ele rejeita o simplismo da (falsa) oposição entre objetividade e subjetividade, ou entre relato e opinião: são vários os momentos em que reitera a falta de substância dos argumentos de quem relativiza a objetividade com base na consideração de que a subjetividade na apreensão dos fatos é inevitável, o que costuma resultar na conhecida proposta pela “maior objetividade e imparcialidade possíveis”.
Ora, essa “impossibilidade” da objetividade plena não deriva de uma interferência inevitável do sujeito, como se esta fosse uma limitação deplorável, “um sinal da impotência humana diante da própria subjetividade”; pelo contrário, o correto é “perceber essa impossibilidade como um sinal da potência subjetiva do homem diante da objetividade”.
Em suma, há uma relação dialética entre objetividade e subjetividade, e é isso que também permite desfazer o equívoco relativo à oposição entre relato e opinião. As diferenças existem exclusivamente na estrutura dos textos – expositivos, narrativos, argumentativos –, pois qualquer fato é captado a partir de alguma teoria – por mais que não pareça ser assim, mas o trabalho da ciência é justamente demonstrar que as aparências não são suficientes para compreender o mundo.
Coerentemente com sua perspectiva teórica, Adelmo utiliza as categorias do singular, do particular e do universal para apontar o jornalismo como uma forma específica de conhecimento baseada no singular: os fatos do cotidiano que se tornam notícia e que precisam ser adequadamente contextualizados, contrariando a perspectiva cristalizada no senso comum, que lhes dá uma interpretação previsível, capaz de se encaixar em seus pré-conceitos – isto é, nas concepções preconcebidas e aceitas como a ordem natural das coisas.
A pirâmide revertida
A longa e densa elaboração teórica fornece os fundamentos para o ponto que justifica o título do livro: a crítica à representação gráfica do processo de construção da notícia através da figura da pirâmide invertida, que recomenda a exposição dos fatos em ordem decrescente de importância. Para Adelmo, “sob o ângulo epistemológico – que é o fundamental –, a pirâmide invertida deve ser revertida, quer dizer, recolocada com os pés na terra. Nesse sentido, a notícia caminha não do mais importante para o menos importante (ou vice-versa), mas do singular para o particular, do cume para a base”.
Penso que aqui reside um ponto fundamental de controvérsia, que precisaria ser esclarecido: uma coisa é considerar a lógica de produção da notícia, ou seja, todo o processo que começa na escolha dos fatos a serem recortados desse fluxo contínuo do cotidiano, continua na apuração – que implica a escolha das fontes adequadas – e culmina na redação e divulgação da notícia propriamente dita. Nesse sentido, será correto dizer que a pirâmide está “em pé, assentada sobre sua base natural”. Outra coisa é a forma de apresentação da notícia, que diz respeito a uma técnica na qual o lide – as informações essenciais – é privilegiado na abertura do texto. Não é, certamente, a única técnica possível, mas é a mais corrente quando falamos de notícia – nem tanto de reportagem, que frequentemente não trata dos fatos “imediatos”, que acabaram de acontecer ou que são anunciados, mas parte deles para abordar temas em profundidade.
Ainda assim, é fundamental perceber o sentido da crítica em torno da qual o livro se organiza: a rejeição à concepção do jornalismo como simples técnica, embora nenhuma técnica seja exatamente simples, porque sempre decorre de uma determinada reflexão humana para o enfrentamento dos problemas práticos que surgem ao longo da história.
Adelmo Genro Filho morreu muito jovem, aos 36 anos, em fevereiro de 1988. Não há quem, no meio acadêmico do jornalismo – pelo menos, na parcela desse meio voltada a esse tipo de investigação –, não lamente seu desaparecimento precoce e não indague sobre os rumos que ele teria sido capaz de dar a seu pensamento, especialmente diante desse momento de enorme incerteza que a tecnologia digital veio a trazer para a prática jornalística. O fato de sua obra principal permanecer como referência para os pesquisadores da área indica, entretanto, que é preciso evitar teorizações apressadas sobre os fenômenos do momento, que se sucedem e envelhecem com uma velocidade assustadora: pelo contrário, interpretá-los exige o cuidado da análise acurada, que procura a essência atrás das aparências.
O segredo da pirâmide, reeditado pela editora Insular, tem relançamento marcado para terça-feira (25/9), após debate promovidopelo Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFSC, do qual tenho a honra de participar, ao lado de Eduardo Meditsch, Jacques Mick e Felipe Pontes.
***
[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]