Foi quase por acaso, mais de 30 anos atrás, que Charles Wood e Marianne Schmink chegaram a São Félix do Xingu, que se tornaria a principal metáfora deste precioso livro sobre um dos locais e um dos momentos seminais da história recente da Amazônia, o “Sul do Pará”.
Os dois pesquisadores já sabiam que seria estratégica aquela pequena cidade, isolada em mais um dos encontros de grandes rios que delimitaram os marcos da ocupação primitiva da Amazônia pelos colonizadores europeus (os novos marcos, para desgraça da Amazônia, viriam a resultar do encontro dos rios com as estradas e das primeiras rodovias com as rodovias seguintes, rasgando a terra e submetendo o homem).
Se não fosse o problema mecânico no pequeno avião em que viajavam para um local próximo, Charles e Marianne não teriam pousado em São Félix naquele dia de 1976. Demorariam mais dias (ou meses) para realizar a incursão e talvez não tivessem usufruído de um acaso tão feliz, que uma máxima de Gentil Cardoso para o futebol – e extensiva à vida como um todo – instrui: quem se desloca, recebe.
Numa Amazônia enorme, disforme, distinta e polifônica (ou diacrônica), só quem circula por suas artérias defronta a história viva, a pré-história, ainda em processo, e, em geral, a anti-história, que fecha as portas da escrita ao registro retardatário (ou retardado) dos que a pesquisam.
“Mundo novo”
Mal desembarcaram do “teco-teco”, Marianne e Charles já estavam no bar da principal rua de São Félix, no meio de um conselho de moradores. Não havia muitas ruas, nem muitos moradores. Quase o universo amostral se exibia aos acadêmicos, oferecendo-lhes tudo que tinha, em conversa franca, amistosa, prestativa.
Os moradores tinham esperanças, mas também tinham fundados receios. Sabiam que da mesma direção originária dos visitantes vinha em seu rumo uma estrada, a PA-279, ainda arranhando a partida, 200 quilômetros a leste daquele ponto ermo, que sobrevivera à decadência da extração da borracha na bacia do Xingu, eixo monopolizador de suas vidas até então.
Em dois ou três anos, porém, a estrada chegaria, trazendo consigo a cornucópia do rodoviarismo com sua epidemia de efeitos nocivos ao domínio da floresta na paisagem amazônica (fazendo-se sentir antes mesmo de chegar fisicamente, como Marianne e Charles perceberiam, em mais uma das suas muitas descobertas de campo, que enriqueceria o marco teórico da pesquisa).
O dono do bar foi telegraficamente profético: “A estrada nos dará acesso ao resto do Brasil. Mas também irá trazer o resto do Brasil até nós”. Dessa relação tem dependido a Amazônia nas últimas quatro décadas, as mais decisivas da sua história, não só pela grandeza nela envolvida, mas por seu tom de coisa irreversível, definitiva, sem volta – e, em grande medida, sem correção. O Brasil quer a Amazônia. Mas a Amazônia quer o Brasil? Que Amazônia o Brasil quer? Qual Brasil a Amazônia recusa?
São algumas das muitas questões que a “ocupação” ou a “integração” da Amazônia suscitam. Mas elas são consideradas para valer? Há uma margem de liberdade e tolerância com a qual podem ser abordadas e resolvidas, ou as interrogações são meramente retóricas e sob elas age um apagador categórico, impondo decisões de fora para dentro, do alto para baixo, com prazo pré-estabelecido?
O colonizador sabe o que quer e procura realizar o seu projeto na fronteira, antes mesmo de conhecê-la e independentemente de aceitá-la. O processo obedece ao velho esquema colonial. Integração e desenvolvimento significam, na verdade, submissão da terra e do homem às determinações do agente externo.
Nas últimas quatro décadas, a principal característica da ocupação da Amazônia pelo colonizador foi a destruição do componente mais caracteristicamente amazônico do bioma: a floresta. Uma área equivalente a quase três vezes o tamanho do Estado de São Paulo, que concentra um terço da riqueza brasileira, foi posta abaixo: 700 mil quilômetros quadrados de floresta, em algumas regiões com a maior concentração da espécie vegetal de maior valor, o mogno, massacrada pela extração predatória. Nenhum povo na história humana destruiu com tanta ferocidade e velocidade um patrimônio botânico como esse, em grande parte perdido para sempre, sobretudo na sua incomparável diversidade biológica.
Madeira foi queimada aos milhões de metros cúbicos ou transformada em toras para uso na indústria de móveis, na construção civil e outros fins, praticados em outras regiões do Brasil e em outros países, ou para servir de matéria-prima para a queima de carvão, colocado em altos-fornos para aumentar o teor natural do minério de ferro, que, em Carajás, é o mais rico do planeta, com 65% de hematita pura, o dobro do concorrente australiano no disputado mercado asiático (que fica com 80% do fornecimento).
A ocupação dos “espaços vazios”, ilusão e absurdo edulcorado por uma geopolítica de conveniência (pleonasmo?), permitiu o surgimento de cidades de porte médio em todo o sul do Pará (acima de 50 mil habitantes), por cujas ruas trafegam carros de luxo, levando pessoas envolvidas em múltiplos negócios, alguns dos quais se medem por centenas de milhões de reais, com conexões internacionais.
Mas quem apertar a vista e avivar a mente sentirá um ar de irrealismo e artificialidade nesse “mundo novo”, como uma Las Vegas no (quase) deserto adaptado, sem jogos de azar, mas marcada por outros imponderáveis, como campos de pastagem, precários cultivos agrícolas, minas exuberantes ou hidrelétricas, que substituíram o primado da floresta.
Lugar da morte
O mundo amazônico ficou mais complexo e diversificado, é verdade, e este livro de Marianne e Charles demonstra essa verdade com exuberância de dados e profundidade de reconstituição. Esse mundo, porém, deixou de ser amazônico, daquele “amazonismo” que os dois autores deste livro perceberam ao longo de suas sete excursões de campo, numa demorada e apaixonada dedicação ao tema das suas pesquisas – mais do que pesquisas, um móvel de paixão e amor pelo que estudavam, que os mantêm até hoje ligados ao objeto da sua atenção e cuidados.
Esse ethos amazônico exige capacidade de harmonia, de compreensão e adaptação do homem à natureza. É preciso conhecê-la antes de decidir o que fazer nela e com ela, patrimônio que os novos colonizadores não quiseram receber dos ocupantes anteriores, com presença de muito mais largo espectro, contadas em milênios e não apenas décadas ou mesmo séculos. O conteúdo amazônico implica o respeito, reconhecimento e uso desse patrimônio de saber, sem o qual a estrada é o veículo da destruição e seus usuários fazedores deserto.
O produto desse apossamento e “amansamento” da terra é transformar a Amazônia em sertão, com sua paisagem devastada, com seus conflitos inevitáveis (e inelutáveis), com sua violência e irracionalidade. O homem que chega transforma tudo para que essa fronteira desconhecida (e temida) passe a ser sua imagem e semelhança.
A dialética natural é banida, assim como as conquistas do processo civilizatório, na forma de liberdade, pluralidade e cidadania (por isso, apesar da democracia ter voltado ao Brasil em 1985, a Amazônia continua sob o cutelo da doutrina de segurança nacional dos militares, passados cinco governos civis). É o império da vontade do mais forte, que torna a Amazônia, idílio do Éden, a reprodução ampliada e desfigurada da matriz das desigualdades e da barbárie.
Quando Charles e Marianne iniciaram sua saga pela Amazônia, prosseguindo e levando às últimas consequências o empreendimento marcante do Cedeplar, o centro de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, no estudo demográfico da Amazônia, todo comércio exterior do Pará não chegava a meio bilhão de dólares.
Hoje, só a conta do minério de ferro de Carajás, explorado pela privatizada Companhia Vale do Rio Doce, é 12 vezes maior. A diferença dá uma idéia do que aconteceu desde então na dinâmica econômica. Mas se a grandeza quantitativa é mesmo de impressionar, e até de louvar, o contrapasso da dança social é de quebrar cadeiras: socialmente, a Amazônia se parece às colônias africanas submetidas pelos sofisticados bwanas europeus.
O Pará é o terceiro destino migratório do país. Legiões de esperançosos trabalhadores ou ferozes aventureiros o buscam, atraídos por suas bugigangas tecnológicas e de capital intensivo, os “grandes projetos” (a recriação dos espelhinhos que fascinaram os índios atraídos do fundo da mata para o contato com os “brancos”).
Como efeito perverso de uma lógica perversa, boa parte dos imigrantes chegam de outros Estados sem família, sem regras, sem limites, dispostos ao enriquecimento de qualquer maneira (ou, quando nada, à sobrevivência), por isso sem trazer família (que virá se derem certo), prontos para a loteria da fronteira, atrasada no tempo em relação às partes modernas do país e do mundo.
Daí a fronteira, em pleno século XXI, conviver com matança de índios, conflitos pela terra, trabalho escravo, prostituição infantil, métodos de produção remanescentes à revolução industrial inglesa do século 18. O lugar onde mais se mata para ter um pedaço de terra, embora a Amazônia ainda seja um “espaço vazio” do tamanho de dois terços do Brasil.
Coragem e lucidez
Marianne Schmink e Charles Wood nos oferecem neste livro, traduzido para o português com atraso de duas décadas (o que dá uma boa medida do interesse real do “sul maravilha” pela maior fronteira do país), um retrato sem retoques e com notável acuidade de uma história que serve de parâmetro para saber de onde vem e para onde vai a Amazônia contemporânea. É um marco de referência que se beneficiou do legado deixado na Universidade de Gainesville, na Flórida, pelo legendário Charles Wagley.
Como seus dois discípulos e sucessores, Wagley localizou na beira de rio uma cidade que também estava isolada e logo seria tocada pelo dedo pervertido do Midas colonizador da Amazônia, em Gurupá (mitologicamente recriada como Itá). Gurupá, com todas as suas seqüelas e vícios, sofreu menos, em mais tempo, do que São Félix do Xingu, o eixo da metáfora de Marianne e Charles, porque a tecnologia da destruição ´=e mais sofisticada e o cliente dos produtos amazônicos, intensivos de capital natural, são impacientes e vorazes.
Esperança de um modo de utilizar a terra mais racional e justo, quando ativistas amazônicos tentavam impedir que a PA-279 prosseguisse a inefável marcha para oeste, sangrando a terra firme (da floresta verdadeira, a kaapor dos índios), São Félix se tornou a contrafação desses sonhos, a capital do município que tem o maior rebanho bovino do Estado, de importância nacional. A floresta serviu de pasto para a produção de gado. Um produto nobre sacrificado a um produto de valor incomparavelmente inferior.
Apesar de todas as histórias de infortúnios, solidamente documentadas, com uma amplitude que os diversos métodos de pesquisa e análise utilizados pelos autores possibilitaram (com ênfase em ver com os próprios olhos, antes e depois de ler as fontes já escritas), Charles e Marianne mantêm, ao final, um “otimismo cauteloso” quanto ao futuro da Amazônia. Convencidos de que quaisquer “previsões mais específicas sobre o futuro da Amazônia são arriscadas”, apostam suas fichas – intelectuais e emocionais – no poder da razão e da consciência.
É impossível não chegar ao final da leitura deste livro rigoroso e apaixonado sem também acreditar que o homem não se permitirá continuar a garatujar nesta página do Gênesis que Deus nos delegou. A Amazônia era um mundo por fazer quando Euclides da Cunha, exatamente um século atrás, encontrou a bela metáfora para defini-la.
Contudo, hoje ela se aproxima mais da terra “vaga e informe” do dito bíblico do que então, vaga por falta de definição justa para a presença humana nela e informe por ter sido destituída de suas formas originais, sem substituto à altura.
Ainda há tempo e espaço para evitar que sua ocupação seja o anteato da destruição, ao invés do ato da criação sugerida pelo grande escritor. Mas não muito. Aliás, a rigor, cada vez menos tempo e espaço, como este livro revela retrospectivamente, como uma coragem, uma lucidez e um compromisso raros no mundo, sobretudo o acadêmico, em relação à nossa (ainda) Amazônia.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]