O suicídio é uma marca d’água que surge instantaneamente em todas as páginas da obra de um autor.
Quando Walter Benjamin (1892-1940) se matou, ingerindo tabletes de morfina, tornou-se impossível ler qualquer de seus textos sem pensar, a cada página: “Esse homem se matou”. O suicídio é agora parte fundamental de seu sistema de pensamento.
A obra de David Foster Wallace (1962-2008) também traz essa marca d’água, provavelmente contra a sua vontade.
É muito difícil ler qualquer dos contos da coletânea “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”, lançada aqui em 2005, sem que o mantra “esse homem se matou” fique ecoando na consciência.
A verdade é que a violência do suicídio -Sylvia Plath (1932-63), Torquato Neto (1944-72)- ou do homicídio -Federico Garcia Lorca (1898-1936), Euclides da Cunha (1866-1909)- é um passo importante na mitificação de um autor.
Foster Wallace foi um mestre absoluto do mapeamento da exótica mitologia ianque.
Tratava com tanto afinco os assuntos mais bizarros da cena contemporânea, que causa espanto não ter deixado umas cem páginas sobre a preparação do próprio suicídio e o efeito que esse evento teria na mente dos leitores.
Wallace era maníaco por detalhes objetivos e subjetivos. Sua obsessão pelas particularidades do comportamento humano não rendeu apenas boa ficção. Rendeu também impagáveis reportagens sobre temas excêntricos.
Quatro de suas melhores matérias jornalísticas estão na coletânea “Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo”, organizada pelo ficcionista e tradutor Daniel Galera.
Completam a seleção uma palestra sobre o inacessível humor em Kafka, ao menos para “estudantes com ressonâncias neurais norte-americanas”, e um discurso “sem baboseiras retóricas” aos formandos do Kenyon College.
Fractal
Os melhores momentos da antologia são proporcionados justamente pelo trabalho de campo. Pelo visto, os editores se divertiam enviando Wallace aos eventos mais bizarros, apenas para ver o que aconteceria.
Assim, a convite da revista “Harper’s”, o escritor foi cobrir o samba do crioulo doido batizado de Feira Estadual de Illinois. Depois, a convite da mesma revista, fez um cruzeiro turístico pelo Caribe.
Dessas experiências surgiram duas “colagens sensório-hipnóticas” -categoria criada por ele- de tudo o que viu, ouviu e fez. O estilo de Wallace pode parecer excessivo e complicado, mas não é. Sua prosa é matematicamente bela e simples como um fractal.
Mais tarde, a convite da “Gourmet Magazine”, o escritor foi ao Festival da Lagosta do Maine e ficou indignado com o modo como as lagostas são fervidas: vivas.
Seu relato é um vigoroso arrazoado contra essa prática hedionda. Por fim, a convite do “New York Times”, foi a assistir à partida entre os tenistas Federer e Nadal, na final de Wimbledon, em 2006.
Dessa vez a colagem sensório-hipnótica é sobre a “beleza cinética” do tênis e a momentânea reconciliação da mente com o corpo.
O método discursivo de David Foster Wallace, nesses textos, parece até com o da conversa de salão.
Quase dá para ouvir sua voz fantasmagórica, agora do além-túmulo, organizando as descrições, os diálogos, as digressões e as notas de rodapé, com a lucidez maníaca dos detalhistas.
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[Nelson de Oliveira édoutor em letras pela USP e autor de Poeira: Demônios e Maldições (Língua Geral)]