Marighella morreu atirando. Marighella sofreu torturas mais de dez vezes.
Marighella fez uma prova de física em versos no colégio e tirou nota dez.
Marighella é homenageado por Gilberto Gil no final da música “Alfômega” (1969), ao grunhir seu nome (“iê-ma-ma-Marighella”).
Quando começou a pesquisa que resultaria no livro “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, em 2002, o jornalista Mário Magalhães, 48, sabia que tinha como matéria-prima um mito coberto por névoas criadas à direita e à esquerda.
O comunista e guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969) é uma figura onipresente na história da esquerda brasileira por quatro décadas -de 1932, quando participou das primeiras agitações estudantis em Salvador à sua morte, em São Paulo, em 1969, quando era considerado o inimigo número um da ditadura, graças às ações de guerrilha da ALN (Aliança Libertadora Nacional).
Após nove anos e meio de pesquisa, Magalhães descobriu que todas as afirmativas acima são falsas.
1) Marighella não estava armado em 4 de novembro de 1969, quando foi alvejado por quatro disparos de policiais comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury;
2) Ele sofreu torturas uma única vez, em 1935;
3) Não sobrou o registro da nota da prova em verso;
4) Gilberto Gil diz que só repetia onomatopeias em “Alfômega”.
Mário Magalhães desfez os mitos em torno do guerrilheiro por uma razão aparentemente simples, segundo ele: só escreve o que pode ser provado por documento ou depoimento.
“A vida real de Marighella é muito mais espetacular do que a mitologia criada por aliados ou inimigos”, afirma o autor.
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Biógrafo rejeita tese de traição a Marighella
O baú de descobertas do livro de Mário Magalhães, um catatau de 760 páginas regiamente documentado, começa pela família -Marighella era neto de uma escrava.
Passa pela religião -apesar de se dizer ateu, era filho de Oxóssi no candomblé.
E chega à sua morte -o policial que revistou o corpo diz que não havia arma na pasta que o guerrilheiro carregava.
A versão de que portava um revólver foi inventada pela polícia três semanas após a morte, segundo Magalhães.
Há ainda revelações saborosas, como a de que o artista espanhol Joan Miró (1893-1983) doou obras para ajudar a financiar o grupo. O cineasta italiano Luchino Visconti (1906-1976), de “O Leopardo”, também o auxiliou.
Marighella tornou-se um mito pela história que carregava. Preso em 1932, 1935 e 1939 pelo governo de Getúlio Vargas, foi eleito deputado constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro em 1946.
Em 1953, organizou a Greve dos 300 mil, que parou São Paulo. Nos anos 1950 e 1960, foi sempre um contrapeso à política oficial do PC.
À época, os comunistas, seguindo diretrizes de Moscou, haviam sepultado a ideia de revolução e defendiam uma união com a burguesia. Após o golpe militar de 1964, Marighella foi um dos primeiros a defender a guerrilha.
Por isso escreveu ao ditador cubano Fidel Castro, em dezembro de 1966 -uma das revelações da obra. Dizia estar “confiante nos promissores resultados do processo de intercâmbio que ora iniciamos”. O Centro de Inteligência do Exército contou 85 integrantes da ALN treinados em Cuba, registra o livro.
Marighella tinha simpatia pelo levante comunista na China, no Vietnã e em Cuba e via na guerrilha rural a saída contra a ditadura.
“Ele se dizia terrorista, mas não aceitava prejuízo para inocentes”, afirma Magalhães. Jamais perdoaria, segundo ele, os ataques feitos por Carlos, o Chacal, em plena Paris, ou as bombas das Brigadas Vermelhas em estações de trem, na Itália.
Apesar de defender a guerrilha rural, paradoxalmente tornou-se conhecido com um manual sobre a guerrilha urbana, de 1969. A obra compilava em 51 páginas os erros e acertos dos atentados praticados da ALN e virou referência para grupos como o alemão Baaden Meinhoff ou os Panteras Negras, dos EUA.
O maior temor de Magalhães era que o livro se tornasse mais uma obra sobre a morte de Marighella, por seu caráter trágico para a esquerda -muitos historiadores usam o episódio para marcar o começo do fim da luta armada.
Tanto setores da esquerda quanto o regime militar diziam que os dominicanos que auxiliaram Marighella foram os responsáveis pela emboscada. Magalhães rejeita com veemência essa versão e a noção de que houve um traidor. Para ele os frades foram bodes expiatórios.
A pergunta que ele faz não é por que a ditadura demorou tanto para achar Marighella, em novembro de 1969, dúvida sustentada por dois fatos:
1) A polícia sabia desde 1968 da ligação dos frades com a ALN; 2) entre o final de 1968 e maio de 1969, a CIA (central de inteligência dos EUA) infiltrara o italiano Alessandro Malavasi no grupo.
A questão mais apropriada, ele diz, é: como Marighella não foi apanhado antes, tantos eram os descuidos de seu grupo com a segurança?
Mas, para Mário Magalhães, não faz sentido buscar culpados. Após entrevistar 256 pessoas e incluir 2.580 notas para detalhar suas fontes, ele chegou a uma só conclusão: “Quem matou Marighella foi a ditadura”. (M.C.C.)
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[Mario Cesar Carvalho, da Folha de S.Paulo]