Ao fotografar a aldeia dos caiapós, no Pará, no começo dos anos 1980, a fotógrafa Nair Benedicto teve uma surpresa desagradável: os índios roubaram todo o seu equipamento no segundo dia de convívio. Desapontada, foi aconselhada a ficar num canto da aldeia e chorar até que suas forças se esgotassem. Essa é a maneira que os caiapós, afinal, preferem para exprimir sua dor e chamar a atenção dos seus pares. Os caiapós podem valorizar a oratória, mas, quando ela falha, as lágrimas são seus mais poderosos argumentos. Nair teve uma prova disso. “No dia seguinte, meu equipamento foi devolvido.” E graças a ele, algumas das melhores fotos da tribo abrem o livro Vi Ver, ao lado da imagens idílicas dos índios araras, registradas na mesma época.
No mesmo Pará, Nair foi atrás de outros brasileiros que não preservam a cultura de origem, mas, antes, se entregam à miscigenação. No Sul de Tucumã, ela fotografou, também nos anos 1980, famílias de migrantes descendentes de alemães com bebês moreninhos do tamanho de Gargantua, o gigante de Rabelais. Provavelmente tiveram melhor sorte que os índios araras que, considerados extintos nos anos 1940, reapareceram com a construção da Transamazônica no começo dos anos 1970. Após muitos contatos frustrados, subgrupos foram encontrados e fotografados por Nair entre 1982 e 1983 próximo a Altamira, no Pará. Nos anos 1990, ele voltaria para registrar índios já aculturados, servindo a colonos, vestindo suas roupas e circulando em vastas terras devastadas.
“A Transamazônica dividiu a tribo”, diz Nair. O mito de origem dos araras pode até explicar essa dispersão territorial por uma briga de parentes no céu que condenou índios a vagar pela terra, mas o que as fotos mostram é uma tribo de sorriso fácil que hoje já não exibe os dentes com o mesmo ânimo. Sem ser exatamente uma etnógrafa, Nair acabou registrando um material que até hoje revistas, produtores de cinema e de TV estrangeiros usam como referência.
Aluna de Cristiano Mascaro e Maureen Bisilliat na Enfoco, histórica escola de fotografia de Claude Kubrusly por onde passaram grandes profissionais, Nair Benedicto teve como inspiradora Claudia Andujar, a fotógrafa suíça que adotou o Brasil e lutou pela criação do Parque Ianomami, tribo fotografada por ela ao longo de três décadas. “De uma maneira ou de outra, o trabalho de Claudia sempre esteve presente quando eu fotografava os índios”, reconhece.
Outras questões foram surgindo além da indígena, quando trocou a missão solitária pelo trabalho em grupo. Na agência F4, seu foco mudou para a questão do menor, depois para o movimento político dos sindicalistas do ABC e, finalmente, para o movimento feminista, até voltar aos índios araras. “Isso me fez pensar em audiovisuais, que tinha abandonado nos tempos da USP.” Decisão acertada. Em 1984, um deles, Amazônia, sobre os projetos faraônicos na região e a situação da população indígena e ribeirinha, ganhou trilha de Hermeto Pascoal e foi distribuído pela Pastoral da Terra.
“Infeliz coincidência”
Com o fim da F4 em 1991, a fotógrafa reuniu amigos e criou a Nafoto (Núcleo dos Amigos da Fotografia) no mesmo ano, entre eles Stefania Bril, Eduardo Castanho, Rubens Fernandes Junior (um dos autores do livro Vi Ver) e Juvenal Pereira. Inspirados pelo Mois de la Photo, mostra internacional de fotografia realizada todos os anos em Paris, os integrantes da Nafoto criaram a primeira edição do Mês Internacional da Fotografia em 1993, promovendo o intercâmbio com outros países e trazendo ao Brasil imagens de Josef Koudelka e Keiichi Tahara, entre outros. O checo Koudelka, célebre por suas fotos de ciganos, é um nome lembrado imediatamente por Nair pela força de suas imagens do desamparo dos desgarrados sociais, mas sua “fronteira” é mesmo o húngaro André Kertész (1894-1985). “Ele me deixa desanimada, porque viu tudo, fez tudo, deixando pouco espaço para nós”, brinca.
Não é verdade, claro. Em 1991, ela enfrentou traficantes para registrar uma cena com crianças em volta de uma mesa de cocaína, flagradas numa favela próxima à Avenida Cupecê, em São Paulo. Ela teve a ideia de reutilizar máscaras de papelão com as quais havia registrado crianças maranhenses pouco tempo antes, evitando a identificação dos usuários. O resultado é uma das mais chocantes imagens do livro, segundo volume da série do FestFotoPoA que homenageia grandes nomes da fotografia brasileira.
“Por uma infeliz coincidência, quando entrei no barraco para fazer a foto, o chefe do tráfico local acabara de ser preso e, claro, passei por uma tensão enorme, pois fiquei como suspeita.” Salva, ela sobreviveu para fotografar o lado alegre da vida, como o de uma dupla de garotos que empina alegremente o guidão de suas bicicletas no Minhocão, na frente de uma moça de calcinha, a modelo da marca Hope. Não a real, a do pôster. Mas, para a meninada, tudo é fantasia.
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[Antonio Gonçalves Filho, do Estado de S.Paulo]