Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Graciliano era contra “foot ball”

Um conto de Karel Capek fala de uma família da idade da pedra lascada, cuja filha sai todas as noites para um lugar misterioso. Algum tempo depois, o pai, furioso, descobre que ela está frequentando uma caverna onde já se fabrica pedra polida, ao que ele reage, protestando e perguntando aonde essa juventude vai parar. Um amigo meu, professor há dezenas de anos e politicamente progressista, chama os professores, de forma geral, de conservadores. Afinal, o que eles fazem, em nome do presente, é tentar conservar minimamente o passado.

Sem tanto apego ao passado, penso que uma vivência quase ideal do tempo presente se constitua a partir de uma tensão permanente entre uma nostalgia algo fantasiosa do passado e uma projeção igualmente sonhadora do futuro. De qualquer maneira, parece que as gerações se sucedem não por e nessa tensão, mas, infelizmente, através de polarizações para um e outro lado: os nostálgicos extremados e os futurólogos sem noção. Uns querem extinguir o computador e o capitalismo e outros anseiam pelo pós-humano ou por uma criatura teleguiada por chips plurifuncionais.

Reclamamos do trânsito, da má qualidade das comidas industrializadas, do serviço de telefonia celular, da violência, das crianças que brincam de videogame e não saem mais às ruas. Retroprojetamos um passado mais tranquilo. Mas, da mesma forma, nossos pais e avós também lamentavam os progressos de sua época e se lembravam de um passado melhor.

Processo contínuo

Karel Capek estava certo. Essa idealização do tempo perdido deve remontar à idade das cavernas. Ou na Grécia Antiga já não havia a nostalgia da Idade do Ouro? Será que, na Idade Média, um copista da corte de algum rei Leopoldo perdido, na Germânia, não se lamentava pelo fim do uso das penas de avestruz? Ou os frequentadores de apedrejamentos, será que não reclamavam de uma época em que as pedras eram menos lisinhas?

Todos se queixam, sonhadores de um passado que, ele mesmo, era pior do que outro que veio antes dele. Até Graciliano Ramos, o prefeito comunista mais eficiente da história do país, que soube como ninguém levar o progresso a Palmeira dos Índios, em Alagoas, e em cuja escrita não há um pingo de sentimentalismo, era, pasmem, um nostálgico. No livro “Garranchos”, de achados inéditos do escritor, o futuro autor de “Memórias do Cárcere” reclama, na década de 1930, do uso de palavras como foot ball, jazz, charleston e box e pergunta se não seria melhor se todos continuassem a cultivar o terço, o reisado, o pastoril e a quadrilha.

Também imagina que, no passado, as pessoas teriam sido mais éticas do que no então presente – 1921 –, além de reivindicar que a água não fosse transportada “entre as paredes redondas de canos americanos caros”. Pedia que se deixassem as fontes em paz, “se é que não queremos morrer de sede”. Em compensação, é o próprio Graciliano que antevê, depois de um elogio às mulheres, que um dia elas ainda governarão o país. Sua escrita reduzida, lúcida, seca, é a mais duramente realista de nossa literatura. E não há dúvida de que, nessa aridez – desadjetivada, direta – o apelo não é o de um retorno ao passado, mas o de transformar o presente, como ele o fez, em seus livros e em sua prática política.

O passado era melhor? O futuro também será? Provavelmente. Ou não. Mas não importa tanto. Os tempos verbais do agora são o particípio presente ou o futuro do pretérito – um passado em processo contínuo ou um futuro já acontecendo. Perdoemos a Graciliano sua fraqueza nostálgica e que ele me perdoe minha ojeriza à palavra delivery, saudosa que sou de uma simples entrega.

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[Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de Quando Nada Está Acontecendo (Martins Editora)]