Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cálculos entre letras

Em geral, o estudante que escolhe cursar Letras no ensino superior descartou a possibilidade de seguir qualquer carreira na área de ciências exatas por não se dar bem com cálculos e conceitos matemáticos. Há um erro nessa fórmula. A ideia de que letras e números não se misturam não poderia estar mais equivocada. Às vezes, a compreensão plena de uma obra literária depende apenas de um pouco mais de conhecimento de álgebra ou geometria.

O matemático Jacques Fux, mestre em Ciência da Computação e doutor em Literatura Comparada, tem bons exemplos dessa hipótese. Ele explica que a literatura pode se valer da matemática de duas maneiras: como argumento ficcional ou elemento estrutural. A obra do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) é um exemplo do primeiro tipo de uso. Seus textos brincam com conceitos matemáticos dos mais diversos, como paradoxos e conjuntos infinitos numeráveis e inumeráveis. No conto O Aleph, o autor utiliza a primeira letra do alfabeto hebraico (aleph) para definir um ponto no espaço que contém todo o universo. “Em matemática, a letra é usada para representar diferentes tamanhos de conjuntos infinitos”, explica Fux. Exemplo: o conjunto dos números reais (cardinalidade aleph-um) é maior que o dos números racionais (aleph-zero), embora ambos sejam infinitos.

Já no conto A biblioteca de Babel, Borges utiliza análise combinatória para descrever o tamanho de uma gigantesca coleção de livros: “deduziu (…) que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos”. Sabendo-se ainda que cada livro tem 410 páginas, preenchidas com 40 linhas de 80 caracteres, chega-se ao total de 101834097 obras distintas. Mesmo que cada livro tivesse o tamanho de um grão de areia, o universo não comportaria essa quantidade de volumes: haveria espaço para “apenas” 1090.

Fugir do acaso

A relação do escritor francês Georges Perec (1936-1982) com a matemática não tem a ver com o conteúdo de suas narrativas, mas com a forma. Em 1969, ele escreveu um romance de 300 páginas chamado O desaparecimento, em que suprimiu a vogal ‘e’, letra que mais ocorre no vocabulário francês – está presente em três quartos das palavras do idioma. No mesmo ano, publicou uma narrativa de 1.247 palavras (5.566 letras), que, descobriu-se mais tarde, constitui um imenso palíndromo, ou seja, pode ser inteiramente lido de trás para frente; é simétrico. Perec escreveu ainda uma série de poemas em que o número de versos tinha de ser igual ao número de letras contidas em cada verso.

Loucura? “A justificativa do escritor para a utilização dessas regras era fugir do acaso, controlar o que não é controlável, mudar e dominar o destino de todas as coisas”, diz Fux. O pesquisador estudou a presença da matemática nas obras de Borges e Perec em sua tese de doutorado, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Charles de Gaulle, na França, em 2010. Recentemente, o trabalho foi publicado em livro, com o título Literatura e matemática, pela editora mineira Tradição Planalto.

Oulipo

Perec é um dos expoentes do Oulipo (do francês Ouvroir de Littérature Potentiel, Oficina de Literatura em Potencial, em tradução livre), uma corrente que propõe a libertação da literatura, de maneira aparentemente paradoxal, a partir de contraintes, ou restrições literárias. O movimento foi criado em 1960 pelo escritor Raymond Queneau (1903-1976) e pelo matemático François Le Lionnais (1901-1984) e teve adeptos importantes como Italo Calvino (1923-1985) e Jacques Roubaud.

Os oulipianos, como são chamados os integrantes da oficina, sabem que não inventaram a roda: a matemática já era usada na literatura muito antes deles, por escritores como Miguel de Cervantes, Lewis Carroll, Edgar Allan Poe, Samuel Becket e Júlio Verne. Como uma forma de homenagem, autores como esses passaram a ser classificados como “plagiadores por antecipação”.

Em artigo previsto para a próxima edição da revista Itinerários, da Universidade Federal de São Paulo, Fux e a jornalista Agnès Rissardo, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concluem que há argumentos suficientes para considerar “plagiadores” do Oulipo, ainda que de forma inconsciente, vários escritores brasileiros, como Osman Lins, Amílcar Bettega Barbosa, Alberto Mussa e José Castello (ver “Matemática na literatura brasileira contemporânea”). Borges também pode ser chamado de plagiador por antecipação. A título de curiosidade, Fux conta que Perec era grande leitor de Borges. “Vários livros do contista argentino integravam a biblioteca pessoal do francês.” Em A vida modo de usar (1978), o oulipiano faz várias citações ao portenho.

A intimidade com a matemática

Se a recíproca era verdadeira, não há evidências, mas sabe-se que os dois tinham leituras em comum. Borges conheceu grande parte dos conceitos que utilizaria em seus contos na obra Matemática e imaginação, dos norte-americanos Edward Kasner (1878-1955) e James Newman (1907-1966), que também faz parte do acervo do Oulipo. “Suas quatrocentas páginas registram com clareza os imediatos e acessíveis encantos da matemática, que até um mero homem de letras pode entender, ou imaginar que entende”, escreveu o argentino no livro Discussão.

Lançado em 1940, Matemática e imaginação é um clássico da divulgação da matemática que ficou conhecido, entre outras coisas, por introduzir o termo googol, para definir o número 10100 – conta-se que a palavra foi inventada por um sobrinho de Kasner de nove anos de idade. O livro menciona, na página 362, a proximidade da ciência exata com as artes: “A matemática é regida pelas mesmas leis impostas às sinfonias de Beethoven, aos quadros de Da Vinci e à poesia de Homero”.

A ideia de que aqueles que não gostam de números devem seguir as humanidades parece estar equivocada. Para Fux, qualquer um pode ler literatura, mas o quanto será aproveitado da leitura será diretamente proporcional à intimidade do leitor com a matemática.

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Matemática na literatura brasileira contemporânea

Estudando os livros Avalovara, de Osman Lins;Os lados do círculo, de Amílcar Bettega Barbosa; O movimento pendular, de Alberto Mussa; e Ribamar, de José Castello; Jacques Fux e Agnes Rissardo encontraram várias regras e conceitos matemáticos como estrutura ou argumento ficcional. Em Avalovara, Lins lança mão de um recurso conhecido como quadrado mágico (ver figura), bastante utilizado por membros do Oulipo. Trata-se de uma tabela de tamanho 5 x 5 em que pode ser lida, em qualquer direção (horizontal e vertical), a frase palindromática sator arepo tenet opera rotas (algo como O lavrador mantém cuidadosamente o arado nos sulcos).

O escritor pernambucano divide essa figura em 25 quadrados menores, e a cada um atribui uma letra da mesma frase palindromática. “Sobre o quadrado grande perpassa-se uma espiral e a partir de cada um dos quadrados menores onde estão inseridas as letras que compõem esse palíndromo, surgem oito histórias diferentes, ciclicamente retomadas de acordo com a espiral”, explicam os pesquisadores. As narrativas do livro ainda podem ser relacionadas a uma figura triangular, de acordo com os enredos. Além disso, o tamanho dos capítulos respeita uma progressão aritmética de 10 linhas para os temas correspondentes às letras R, S, O, A e E; de 12, para P; e de 20, para T.

Em Os lados do círculo, Bettega Barbosa cria relatos a partir de um centro fixo localizado em Porto Alegre, de forma semelhante a um sistema axiomático (conjunto de proposições óbvias, que pode ser usado para a derivação lógica de teoremas). Mussa, por sua vez, empresta a permutação, da análise combinatória, para criar novas histórias para um triângulo amoroso em O movimento pendular. Já Castello estipula uma restrição clara para Ribamar: baseado na estruturação de uma música, cada capítulo deve ter um tamanho exato.

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[Célio Yano, Ciência Hoje/ PR]