A grande novidade no centenário de nascimento do escritor capixaba Rubem Braga (1913-1990), comemorado hoje, não é a descoberta de uma reveladora crônica escondida no fundo da gaveta, mas a redescoberta de um velho Braga ao qual novos leitores não tiveram acesso. Dos cinco livros programados para marcar a data, um deles reúne textos apenas conhecidos por quem estava vivo há 60 anos e lia o combativo Correio da Manhã (1901-1974), jornal carioca pelo qual passaram os críticos Otto Maria Carpeaux e Moniz Vianna, entre outros.
Organizado pelo professor de literatura Augusto Massi e publicado pela José Olympio, casa onde Braga estreou, Retratos Parisienses, previsto para chegar às livrarias no dia 1.º de fevereiro, traz 31 textos inéditos em livro e que exploram um lado menos conhecido do cronista: o de crítico de arte e intelectual, capaz de falar com desenvoltura tanto da filosofia de Jean-Paul Sartre como da poesia de Jacques Prévert, passando pela pintura de Chagall e Picasso.
Autor de 15 mil crônicas, publicadas ao longo de 62 anos de jornalismo, Braga descrevia-se como uma máquina de escrever – “com algum uso, mas em bom estado de funcionamento”. Produzia para ser publicado no dia seguinte. Comparava, enfim, seu ofício ao de um cigano, “que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha”. O tempo mostrou ser impertinente tal comparação. O efêmero pode ser o ponto de partida de algumas dessas crônicas, mas o de chegada é a certeza do valor literário de Braga, atestado em livros como o infantil O Menino e o Tuim (a ser reeditado também em fevereiro), e antologias como O Lavrador de Ipanema e 200 Crônicas Escolhidas (março), os três da Editora Record.
Além desses títulos, a José Olympio coloca nas livrarias, ainda em fevereiro, uma reedição de Na Cobertura de Rubem Braga, do jornalista José Castelo, ensaio biográfico de 1996, feito com fragmentos de suas crônicas. Essa tarefa só foi possível porque, como escreveu o crítico Davi Arrigucci Jr. num ensaio dos anos 1970, “o eu que nos fala nas crônicas de Rubem Braga é um tipo de narrador oral que fala consigo mesmo”. Sendo autorreferente, ele volta a todo momento à infância de menino da roça em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, como frisou outro crítico, Décio de Almeida Prado, nas páginas do Estado de S.Paulo– onde o capixaba escreveu –, acentuando que, de todos os personagens, o próprio Braga era o mais assíduo frequentador das suas crônicas.
Foi pensando nisso que uma das organizadoras de O Lavrador de Ipanema, Januária Alves, selecionou para o livro, ao lado de Leusa Araújo, 14 textos que fazem a ligação entre o menino da roça e o “urso” solitário e solteirão que plantava pintagueiras, goiabeiras e até mangueirinhas carlotas na cobertura de seu edifício, na Rua Barão da Torre, em Ipanema. “Ele foi um ecologista muito antes de se falar em sustentabilidade”, diz Januária, que pesquisou antigas crônicas, entre elas algumas publicadas pela Editora Sabiá (fundada em 1966 por Braga e Fernando Sabino e depois comprada pela José Olympio). Nesses textos, Braga fala de um mundo ancestral, agrário, em que a comunhão com a natureza é o veículo para a transcendência. “Em O Mato, uma crônica de 1952, ele descreve um camaleão correndo, passarinhos voando e a vida silenciosa das árvores, comparando-se a elas com humildade”, observa a organizadora.
Defesa de Céline
A natureza como condição inversa aos códigos de conduta humana é o tema explorado no único texto infanto-juvenil produzido por Braga e publicado originalmente em 1986 pela Quinteto Editorial, O Menino e o Tuim, agora relançado pela Record. Nele, um menino tenta domesticar o menor periquito do Brasil, salvo por ele da morte certa, mas, ao mudar para a cidade grande, se dá conta que o espaço urbano não combina com psitacídeos gregários e corta as asinhas do tuim. Mutilado, ele é devorado na sequência por um impiedoso gato ruivo.
Estudioso da natureza, Braga descobriu, para sua decepção, que todas as cores que o pavão ostenta não são dele. O pavão, escreveu ele numa crônica de 1958, é “um arco-íris sem plumas”. Não há, observa o cronista, pigmentos em sua cauda, apenas bolhas d’água em que a luz se fragmenta. Disso ele tirou uma lição: esse também é o luxo do grande artista, “atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos”. Braga, analisa Humberto Werneck, cronista do Estado, “está falando de si mesmo, pois do mínimo ele extraía o máximo”. E cita, como prova, a primeira reportagem do escritor, publicada no mineiro Diário da Tarde, em 7 de março de 1932. Nela, o jovem repórter, então com 19 anos, transforma uma banal exposição canina numa crônica sobre um homem condenado por matar um cachorro no Espírito Santo. Como se vê, não foi Tom Wolfe o inventor do new journalism – que trata os fatos como literatura –, mas o velho Braga.
Cidadão do mundo, ele foi até embaixador no Marrocos (de 1961 a 1963), anos depois de uma temporada na capital francesa, entre fins da década de 1940 e início de 1950, quando assinou, como correspondente estrangeiro, as crônicas publicadas em Retratos Parisienses. O organizador da antologia, Augusto Massi, pretende com ela chamar a atenção do leitor para um lado menos conhecido de Braga, o de crítico de arte. Impressiona a erudição do cronista. Com desconcertante franqueza, ele diz a Chagall que o pintor está sempre contando a mesma história. Destemido, sai de uma exposição de Matisse, então com 81 anos, com a impressão de que seus nus de 1946 eram bem melhores.
Retratos Parisienses é também um registro histórico da eclosão do movimento existencialista na França, nos anos 1950. Braga, em conversa com Juliette Gréco, conta histórias engraçadas – a cantora criou o Tabou, seu bar underground, depois de muitos baldes d’água atirados em sua cabeça por causa de conversas noturnas nas ruas. A cave era só um pretexto para encontrar amigos como o poeta Prévert e o filósofo Sartre, também entrevistados pelo cronista. “Procurei remontar discretamente a cena cultural parisiense do pós-guerra com esses perfis e entrevistas, destacando o debate em torno de colaboracionistas como Céline, o declínio das vanguardas históricas representadas por Breton, Cocteau, De Chirico, Foujita, e o reposicionamento de intelectuais como Sartre, Montale e Thomas Mann.”
É de Eugenio Montale (1896-1981), o poeta italiano premiado com o Nobel em 1975, um dos melhores perfis do livro. Dele, o cronista brasileiro ouve que o transitório não lhe interessa, que o dissídio entre indivíduo e sociedade é inevitável – discurso amargo de ouvir para um socialista como Braga – e que, finalmente, ninguém pode garantir uma época de ouro para a arte poética, pois os poetas são inadaptáveis a qualquer tempo.
Braga descreve seus entrevistados com sutil ironia. Diz que escreveria melhor se tivesse um escritório como o de Sartre. Critica as últimas pinturas de De Chirico, que se parecem com antigas telas do século 18, segundo ele. Descreve Prévert como um sujeito um tanto grosso, de cara avermelhada e sempre vestido de preto. Curiosamente, a uma semana do julgamento de Céline pela Corte de Justiça de Paris, acusado de colaboracionismo, Braga parte em sua defesa, argumentando que os livros do autor de Morte a Crédito eram proibidos na Alemanha nazista. É um Braga polêmico, que reinventa a crônica com incômoda independência ideológica.
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[Antônio Gonçalves Filho, do Estado de S.Paulo]