Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um bicho do mato cosmopolita

O homem capaz de seguir uma borboleta amarela pelas ruas do Centro do Rio – lírico passeio que transformaria numa trinca de crônicas de antologia – era o mesmo que, como correspondente na Segunda Guerra Mundial, preferiu sempre a companhia dos soldados da tropa, homens simples que, como ele, tinham o pé no interior do país e apreciavam cigarros Yolanda sem filtro; aquele que, depois de entrevistar Pablo Picasso em Cap d'Antibes, descobre que só conversaram sobre brinquedos infantis, incêndios, o mar; o embaixador que, em seus tempos de serviço no Marrocos, privado da visão dos brotos de Ipanema, armou uma rede cearense entre duas árvores e se contentou, chupando uvas e figos, com as idas e vindas de fenícios e cartagineses, romanos e vândalos, bizantinos e visigodos, cruzados e árabes, a poucos quilômetros do penhasco de Gibraltar.

O velho Braga, como ele mesmo se chamava desde jovem, era o mais bicho do mato dos escritores cosmopolitas do Brasil. Estando em Paris, sonhava com Marataízes, no litoral do Espírito Santo, e fazia questão de aparar os cabelos a cada 15 dias, para não se parecer com um turco. Bem relacionado, frequentava os mesmos cafés onde circulavam personalidades da literatura e das artes plásticas que viviam na cidade no início dos anos 1950: gente como André Breton, Jacques Prévert, Marc Chagall, Georges Braque, Jean-Paul Sartre. Pedia o pernod sem cerimônia, como se acabasse de chegar ao Vermelhinho, na Cinelândia.

Aproveitou para entrevistar a turma. Fazendo frilas para o Correio da Manhã, mandou matérias escritas na primeira pessoa. Quando esta é Rubem Braga, vamos combinar, isso faz toda a diferença. Os comentários são diretos, honestos, íntimos. Para conseguir o encontro com Pablo Picasso, telefonou e disse a senha: “Sou amigo de Cícero Dias”. Praticamente nada perguntou nem anotou. Na longa matéria enviada ao jornal, saiu-se com a seguinte desculpa: “Fiz mal, com certeza. Quando me apresentei na casa de Picasso, não disse que era jornalista. Não menti, nem mesmo por omissão. Ser jornalista é, sobretudo, fazer perguntas e, na verdade, eu não tinha nenhuma pergunta que lhe pudesse fazer. Estava com os olhos cheios de um desenho fino e exemplar de um homem, mulher e cabrito; via ainda um torso de mulher num vaso verde, um novilho deitado, centauros, caras redondas, formas de vasos, cores de quadros…”.

O Urso, apelido que ganhou dos amigos, sentia-se ainda mais casmurro e carrancudo, as grossas sobrancelhas ainda mais fechadas, em Paris. Em carta, confessou que andava escrevendo pouco e mal, e que sua vontade era retornar, para viver três meses na roça. Talvez lhe doesse a recordação de outra temporada parisiense, três anos antes, quando teve início seu caso amoroso com Tônia Carrero: “Tenho muita amizade pelo seu joelho esquerdo”, mimava-a Rubem. Ela estava casada (com o artista plástico Carlos Thiré); ele também (com Zora Seljan, mãe de Roberto, seu único filho).

Rubem e Tônia se encontravam em bistrôs discretos e passavam horas conversando. Quando o lance esquentava, iam a um hotelzinho de grandes quartos e com banheira, um luxo e tanto para Paris. Antes de pegar o navio de volta, ela avisou que não queria mais ficar com ele se não fosse como antes, apenas dois amigos que curtiam as boas coisas da vida. Rubem sofreu.

Foi um homem de muitas paixões: a cronista Maluh de Ouro Preto, Danuza Leão (platonicamente), Bluma Wainer, que para viver com ele chegou a se separar do marido, o jornalista Samuel Wainer. Bluma teria sido o grande amor de sua vida. A própria Tônia Carrero afirmou isso ao jornalista Marco Antonio de Carvalho, autor da mais completa biografia de Rubem Braga, Um cigano fazendeiro do ar, lançada em 2007 pela editora Globo.

Ao contrário de Na cobertura de Rubem Braga, de José Castello, “uma biografia minimalista”, na definição de seu autor, o livro de Marco Antonio de Carvalho arriscou grandes voos de rigor documental. A investigação incluiu 267 entrevistas – realizadas em Cachoeiro de Itapemirim (terra natal do biografado), Vitória, Rio, São Paulo, Roma, Paris e outras cidades –, a descoberta de cartas e textos inéditos, fotos que vão do início do século XX até a morte do cronista em 1990 (de câncer na laringe), uma bibliografia de mais de 400 livros e a leitura de dezenas de coleções de jornais e revistas. Para tanto, consumiu mais de dez anos de trabalho, que o autor praticamente bancou do próprio bolso.

O resultado – se não possui o charme da linguagem de um Ruy Castro ou o ritmo cinematográfico de um Fernando Morais – é um monumento, não apenas sobre a crônica, gênero tão brasileiro, como também sobre um rico período da vida intelectual e política do país. Pena que o autor não pôde ver o livro pronto: morreu meses antes de ele chegar às livrarias, em 25 de junho de 2007, aos 57 anos, vítima de enfarte. “Virei um obsessivo. É muito difícil para o biógrafo abandonar o biografado”, costumava dizer Marco Antonio de Carvalho, que, em comum com sua personagem, tinha apenas o fato de ter nascido em Cachoeiro. Sequer o conheceu em vida.

“Um cigano fazendeiro do ar” abre com um episódio de abril de 1945: as tropas brasileiras enviadas à Itália durante a Segunda Guerra conseguem vencer os alemães, alguns dias antes da vitória final dos aliados. A bordo de um jipe, está o único repórter brasileiro que testemunhou a rendição. “Nenhum correspondente de guerra brasileiro aproximou-se tanto das batalhas como Rubem”, afirma Carvalho no livro.

“Aqui vive um solteiro feliz”

Braga tinha experiência: com apenas 19 anos, cobrira a Revolução Constitucionalista de 1932 na fronteira de Minas Gerais e São Paulo, chegando a ser preso como espião. Estava nos cueiros de uma longa e tumultuada carreira na imprensa. Ao longo de 62 anos, nunca foi de esquentar lugar ou se acomodar, sendo um dos jornalistas brasileiros que mais colaboraram em jornais e revistas. Nesse tempo, produziu cerca de 15 mil crônicas, plasmando um estilo de prosa que era uma ciência quase exata de tão simples e bem posta, a falar de armadilhas de passarinho, pés de milho, bacias de jabuticabas, aulas de inglês, ais de Copacabana, mulheres lindas e elegantes. Ficou conhecido como “Príncipe da Crônica” ou “Sabiá da Crônica” (epítetos que detestava).

Largava o trabalho por questões políticas, financeiras, sentimentais, éticas – ou por não gostar de ouvir desaforo calado. Durante anos foi cronista da revista “Manchete”, até o dia em que o patrão Adolpho Bloch ofereceu uma festa a Juscelino Kubitschek no então bar da moda, o Antonio's. À sua entrada, Adolpho exclamou: “Olha, presidente, chegou o maior cronista do Brasil!”. Rubem respondeu de bate-pronto: “Maior cronista do Brasil, né? Agora conta quanto você me paga”. Foi despedido.

Refugiou-se na cobertura da Rua Barão da Torre, em Ipanema, onde mandou afixar um aviso na entrada: “Aqui vive um solteiro feliz”. Nela plantou palmeira, um pomar com mangueira e goiabeira, um jardim em cujo centro fincou a estátua de Bluma Wainer esculpida por Alfredo Ceschiatti. Nela recebeu os grandes amigos, em sacerdócio: Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Vinicius de Moraes, Millôr Fernandes, Joel Silveira. E passou a ser confidente de jovens inteligentes e talentosas (entre elas, a futura presidente da Academia Brasileira de Letras Ana Maria Machado).

Sempre quis voltar à infância, entre formigas, rapaduras e passarinhos (sobre os quais sabia tudo e alguma coisa); criou frases de gênio (“Fazer política é namorar homem”, “Crônica é viver em voz alta”, “Ultimamente têm passado muitos anos”); era sonâmbulo e, em crise, retirava todos os livros da estante; gostava e entendia de artes plásticas, embora comprasse quadros de olho em futuras crises de grana; bebeu uísque, e bem; quem quisesse fazê-lo feliz, bastava pô-lo num barco a passear nas Cagarras; poucos escreveram em língua portuguesa como ele e raros como ele souberam usar o ponto e vírgula – os daí de cima todos são uma canhestra homenagem aos seus 100 anos de nascimento.

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[Alvaro Costa e Silva é jornalista]