Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

“É bom que os governos tenham medo das pessoas”

A internet se transformou no maior instrumento de vigilância já criado e a liberdade que ela representa está ameaçada. A avaliação é de Julian Assange, criador do WikiLeaks, que há sete meses vive na Embaixada do Equador em Londres – Quito lhe concedeu asilo, mas os britânicos não lhe deram salvo-conduto para que vá ao aeroporto e deixe o país. Assange seria extraditado para a Suécia, onde é acusado de crimes sexuais. O australiano recebeu a reportagem do Estado para falar sobre seu livro Cypherpunks, Liberdade e o Futuro da Internet, que está sendo lançado no Brasil pela Boitempo Editorial. A seguir, os principais trechos da conversa.

A web está numa encruzilhada?

Julian Assange – Tecnologia produz poder, a ponto de a história da civilização humana ser a história do desenvolvimento de diferentes armas de diferentes tipos. Por exemplo, quando rifles eram as armas dominantes ou navios de guerra ou bombas atômicas. Desde 1945, a relação entre as superpotências era definida por quem tinha acesso a armas atômicas. Hoje, a internet redefiniu as relações de força antes definidas pelas armas. Todas as sociedades que têm qualquer desenvolvimento tecnológico, que são as sociedades influentes, se fundiram com a internet. Portanto, não há uma separação entre sociedade, indivíduos, Estados e internet. A internet é hoje o alicerce da sociedade e conecta os Estados além das fronteiras. Conhecimento é poder. Outras coisas também são poder, mas ela deu muito poder a pessoas que antes não tinham. Agindo contra essa força está a vigilância em massa criada por parte do Estado.

De que forma ocorre essa vigilância?

J.A. – A comunicação entre indivíduos ocorre pela internet. Sistemas de telefone estão na internet, bancos e transações usam a internet. Colocamos nossos pensamentos mais íntimos na internet, detalhes, como o diálogos entre marido e mulher e até nossa posição geográfica. Enfim, tudo é exposto na internet. Isso significa que grupos envolvidos na vigilância em massa realizam uma apropriação enorme de conhecimento. Esse é o maior roubo da história. A tecnologia está sendo desenvolvida para essa vigilância em massa e vendida por empresas de países como a França, que vendeu um sistema de vigilância para o regime de Muamar Kadafi. Na África do Sul, há um sistema desenhado para gravar de forma permanente todas as ligações que entram e saem do país e as estocam por apenas US$ 10 milhões ao ano. Está ficando barato. A população mundial dobra a cada 20 anos. O custo de vigilância está caindo pela metade a cada 18 meses.

Muitos acreditam que a Primavera Árabe só ocorreu graças à internet. O que o sr. acha?

J.A. – Há uma série de histórias de um longo trabalho de ativistas, sindicatos e até clubes de futebol que tiveram um papel importante na Tunísia e no Egito, os Ultras. O ativismo pan-arábico é algo novo e potencializado pela web. Diferentes ativistas em diferentes países se conectaram pela web, trocando dados, identificando quem era bom e quem era mau. O movimento dos Ultras veio da Itália para clubes da Tunísia e Egito pela internet. O WikiLeaks jogou muita informação que foi atacada pelos regimes na Tunísia e no Egito. Mas houve também informações disseminadas por esses países e, mais importante ainda, disseminadas para fora desses países, a tal ponto que ficou difícil para EUA e Europa defenderem seus aliados.

O sr. aponta para o poder de Facebook e Google. Como esses sites são usados contra civis?

J.A. – O Google sabe o que você estava pensando. E sabe o que você pensou no passado, porque quando você quer saber algum detalhe, busca no Google. Sites que têm Google Adds, ou seja, todos os sites, registram sua visita. O Google sabe todos os sites que você visitou, tudo o que você buscou. Ele te conhece melhor que você. Você sabe o que você buscou há dois dias? Não. Mas o Google sabe. Alguém pode dizer: o Google só quer vender publicidade. Mas, na realidade, todas as agências de inteligência dos EUA têm acesso ao material do Google. Eles acessaram isso em nosso caso.

Como fizeram isso?

J.A. – Usaram cartas da agência de segurança nacional e mandados para buscar os dados de e-mail das pessoas envolvidas em nossa organização. Isso saiu do Google, da conta do Twitter, onde pessoas entraram para acompanhar nossa conta. No caso do Facebook, é algo impressionante. As pessoas estão fazendo bilhões de horas de trabalho gratuito para a CIA. Colocando na rede seus amigos, suas relações com eles, seus parentes, relatando o que estão fazendo, dizendo que viram aquela pessoa naquela festa, outra naquela loja. É um incrível instrumento de controle. Países como a Islândia têm uma penetração no Facebook de 88%. Mesmo que você não esteja no Facebook, seu irmão está e está relatando sobre você.

Como o sr. explica o fato de pessoas de diferentes culturas e religiões estarem dispostas a revelar suas vidas na web?

J.A. – Você pode dizer: bom, estou fazendo isso de forma voluntária e é mais importante estabelecer conexões sociais do que se preocupar com o aparato de um Estado totalitário. Mas isso não é verdade. Pessoas querem compartilhar algo com meus amigos e amigos de meus amigos, mas não com meus amigos e com a CIA. As pessoas estão sendo enganadas.

Mas a censura na China, no Irã e em Cuba não mostra que a web é mais ameaçadora para esses regimes que para os civis?

J.A. – Pessoas censuram por um motivo. Porque têm medo ou querem ter mais poder. Normalmente, eles querem manter o poder. O Irã censura porque teme que iranianos sejam influenciados por material de fora do país. E quem publica isso? Bom, alguns são dissidentes genuínos, mas também há empresas de fachada, criadas por israelenses e americanos. Denunciamos essas empresas no WikiLeaks. Mas acho que é saudável que governos tenham medo das pessoas. É ótimo que a China esteja com medo do que sua população pense. A China baniu o WikiLeaks em 2007. Pelo que sabemos, foi o primeiro país a bani-lo. Temos travado uma guerra para superar o firewall chinês.

Qual sua avaliação sobre o argumento de que os documentos divulgados pelo WikiLeaks foram obtidos de forma ilegal?

J.A. – Generais não definem a lei. Ou ao menos não deveriam. Se falamos da situação americana, foi perfeitamente legal.

A obtenção dos documentos?

J.A. – Sim, a forma com que foram obtidos. Militares americanos não têm direito de acobertar crimes. Não podem usar a confidencialidade de documentos para manter um crime sigiloso. Às vezes, a polícia tem de manter algo secreto. Uma investigação sobre a máfia deve ser mantida em sigilo. Outras organizações, como editores e jornais, têm a responsabilidade perante o público de publicar informação que o ajude a entender o mundo.

Como vê o comportamento dos governos latino-americanos diante da internet e da imprensa?

J.A. – É bem variado e há vários problemas. Comparado com o restante do mundo, a região está bem.

O presidente (do Equador) Rafael Correa ataca muito a imprensa. O que o sr. acha disso?

J.A. – Deveria atacar mais. A primeira responsabilidade da imprensa é a precisão e a verdade. O grande problema na América Latina é a concentração na mídia. Há seis famílias que controlam 70% da imprensa no Brasil, mas o problema é muito pior em vários países. Na Suécia, 60% da imprensa é controlada por uma editora. Na Austrália, 60% da imprensa escrita é controlada por (Rupert) Murdoch. Portanto, quando falamos em liberdade de expressão, temos de incluir a liberdade de distribuição, uma das coisas mais importantes que a internet nos deu.

O sr. é herói ou criminoso?

J.A. – Sou apenas um cara. Todos vivemos só uma vez. Todos temos responsabilidade de viver de acordo com nossos princípios. Tento fazer isso. Não preciso me definir. Na verdade, quando as pessoas se definem, na maioria das vezes, estão mentindo.

Por que o sr. não volta à Suécia (onde é acusado de crime sexual)?

J.A. – Seria extraditado para os EUA. Os EUA têm processo contra mim e o WikiLeaks. O governo diz em seus documentos internos que a investigação é de tamanho e natureza sem precedentes. É algo sério que envolve mais de uma dúzia de agências.

O sr. disse que publicará cerca de um milhão de documentos em 2013. Algo sobre o Brasil?

J.A. – Sim. Publicaremos muito sobre o Brasil neste ano.

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Hóspede excêntrico convive com cantoria em espanhol

Julian Assange pode ser considerado um foragido pela polícia, mas, na prática, já vive confinado, ainda que em condições bem melhores que numa prisão, com visitas frequentes e em uma das regiões mais valorizadas de Londres. Dentro e fora da embaixada do Equador, o esquema de segurança em relação ao ativista beira a paranoia, tanto pela polícia quanto pelos seguranças do escritório equatoriano.

Numa das ruas de comércio mais movimentadas da cidade e ao lado da loja Harrods, um caminhão da polícia permanece estacionado a poucos metros da porta de Assange, 24 horas por dia. No teto do veículo, uma antena capta tudo o que se transmite de dentro da embaixada. O Estado contou pelo menos cinco policiais nas portas da embaixada, um deles a dois passos da entrada do local.

A Justiça já avisou: basta Assange colocar o pé fora e será preso, antes mesmo de chegar à rua. “Essa é sua fronteira”, apontou um segurança para a porta da embaixada.

Uma vez dentro da missão equatoriana, que tem suas cortinas fechadas, a segurança e o controle não deixam nada a desejar para a polícia londrina. O passaporte original dos visitantes é exigido e mantido com um segurança privado. Celulares também não são autorizados a entrar e, apagados, são entregues aos seguranças.

Assange vive, na prática, encarcerado e sem data para sair. A embaixada é modesta, com decoração austera e divide um andar com a representação da Colômbia. Uma das poucas salas foi transformada em seu quarto. Uma cama foi trazida, mas a reportagem recebeu instruções claras de que não poderia ter acesso à habitação.

Assange e seu entorno cozinham, mas as possibilidades são limitadas. Muitas vezes, pedem comida pelo telefone. “Não é fácil”, admitiu uma das pessoas na embaixada.

Nos corredores, o estilo excêntrico de Assange e de seus assistentes, que parecem ter saído de uma nova etapa do filme Matrix, se mistura com características típicas de uma repartição pública de um país sul-americano. Secretárias cantam em espanhol, estátuas de santas repousam em prateleiras de móveis de madeira, há gargalhadas generosas de funcionários e pessoas falam aos berros pelo telefone, som abafado apenas pelo barulho de um insistente aspirador de pó.

Visitas

No pequeno saguão da embaixada, decorada com uma enorme foto do presidente Rafael Correa, câmeras vigiam o local, além de um sistema de códigos nas portas de cada sala. O controle sobre as imagens é total. A embaixada não permite que fotos ou vídeos sejam feitos de suas instalações, exceto da sala onde seria realizada a entrevista. Nenhum outro assistente de Assange pode ser filmado por “questões de segurança”.

Já uma lista de presença na porta da embaixada serve de termômetro da presença de Assange no local. Em dois dias de agenda, o embaixador do Equador em Londres recebeu uma visita. Assange, mais de dez.

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Obra ignora opressão a jornalistas e blogs

“Esse livro não é um manifesto. Não há tempo para isso. Ele é um alerta”. É assim que Julian Assange abre seu livro que serve de denúncia sobre o futuro da internet. Sua tese é simples: a maior comunicação entre as pessoas abriu espaço para uma maior vigilância e a internet seria o “maior facilitador do totalitarismo que já vimos”.

Os quatro autores fizeram parte da origem do movimento Cypherpunks, grupo que deu origem ao WikiLeaks e defende uma reação da sociedade diante desse controle. A visão dos autores beira a paranoia. Segundo eles, logo governos poderão interceptar “todos as relações expressadas, todas as páginas web vistas, todas mensagens enviadas e todos pensamentos buscados no Google. E então estocarão esse conhecimento, bilhões de interceptações por dia, um poder jamais sonhado, em vastos armazéns secretos, para sempre”.

Dirigido explicitamente contra o governo dos EUA e de países ocidentais, o livro praticamente ignora a opressão de ditaduras contra jornalistas e blogueiros pelo mundo. Ironicamente, o chamado às armas é fruto de um debate realizado pela RT, o canal estatal da Rússia, país acusado por diversas organizações de tentar controlar sua imprensa livre.

Os Cypherpunks acreditam que o uso da criptografia será necessário. No fundo, esse instrumento criaria ilhas de liberdade e, nesse cenário de cataclismo da democracia, apenas essa elite da informática sobreviveria. Talvez na Rússia ou no Equador.

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[Jamil Chade, enviado especial do Estado de S.Paulo a Londres]