Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Salvamentos em tempo de guerra

Fluente em várias línguas, Albert Otto Hirschman (1915-2012) era o homem certo para Varian Fry, americano instalado em 1940 num hotel na Marselha (França) repleta de refugiados. Fry viera com o objetivo de salvar dos nazistas a nata intelectual alemã e austríaca, em especial escritores, artistas “degenerados”, cientistas, filósofos, músicos, líderes sindicais, socialdemocratas e antifascistas, na maioria judeus (entre vários outros, Marc Chagall, Max Ernst, Max Ophuls, Hannah Arendt, Franz Werfel, Lion Feuchtwanger, Hertha Pauli, Alfred Döblin, Golo e Heinrich Mann, Egon Adler, Walter Mehring, André Breton, Marcel Duchamp).

Todos presos em uma arapuca: mesmo quem tinha passaporte não podia deixar a França – ocupada pelos nazistas – sem visto de saída. O governo colaboracionista de Vichy negava-lhes o papel, pronto a entregá-los aos alemães “sob demanda”. Com apoio da primeira-dama americana Eleanor Roosevelt, e graças a doadores privados, em 1940 Fry fundara em Nova York o Emergency Rescue Committee (ERC). Teria direito a limitados vistos especiais de entrada para os Estados Unidos, pois a política americana era avessa a refugiados e a judeus. Uma lista flexível de 2 mil nomes foi elaborada.

Hirschman deixara a sua Berlim natal com 17 anos para lutar ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola. Mais tarde alistou-se no exército francês. Desmobilizado em 1940, depois da capitulação da França, seu comandante permitiu-lhe escolher outro nome. Inventou Albert Hermant, de Filadélfia, e, de uniforme – importante para impor respeito em suas atividades – apresentou-se a Varian Fry, que simpatizou de imediato com o jovem de 25 anos por conta de seu sorriso alegre, jeito moleque, ar inocente nos grandes olhos cinzentos. Evidente a sua sagacidade política, o talento em se safar de situações difíceis e de encantar mulheres. Para Hirschman, Fry era agradável, divertido, otimista e acreditava em ativismo, ainda que fosse necessário transgredir. “Fry era o único que operava para ajudar refugiados a escapar”, relatou mais tarde.

Agressão verbal

Tornou-se claro, logo, que por meios legais não salvariam seus refugiados. Hirschman, especialista em viver na clandestinidade, assumiu a função de percorrer Marselha a fim de estabelecer contatos, conseguir passaportes falsos, negociar com consulados dispostos a vender vistos para emigrantes, trocar dólares por francos no câmbio negro, descobrir rotas de fuga pelas montanhas íngremes dos Pirineus até a fronteira espanhola e daí descer até Port-Bou, na Espanha, de onde saía o trem para Lisboa.

Com a sua ajuda, o próprio Fry, um wasp presbiteriano, aprendeu a contrabandear pessoas, contratar falsificadores e mentir à polícia. Tudo extremamente perigoso e que deveria permanecer em absoluto segredo, algo quase impossível: os refugiados, falantes compulsivos, reuniam-se em cafés infiltrados de agentes da Gestapo e da polícia de Vichy. Para Hirschman, Fry também falava um pouco mais do que devia. “Mas a expressão impassível, calma, meio gozadora, despistava. Para nós era uma espécie de milagre que prosseguíssemos em nossas atividades, dia após dia. Porém, a gente se acostuma tanto a milagres como a qualquer outra coisa.”

Um auxílio valioso na passagem clandestina pelas montanhas foi a de Lisa Fittko e de seu marido, Hans Fittko. Ambos comunistas alemães, escaparam da Gestapo e pretendiam, com um grupo, fugir para Lisboa, via Espanha – todos portadores de documentos forjados. Lisa chegou primeiro a Port-Vendre, perto da fronteira. O primeiro passo foi contatar Vincent Azéma, prefeito socialista da vizinha Banyuls-sur-Mer, junto aos Pirineus. Este indicou uma rota de travessia e sugeriu dar-lhe hospedagem gratuita num hotel na cidade, para que guiasse refugiados até a fronteira espanhola. Lisa acedeu e postergou a própria fuga. O primeiro a bater em sua porta, de madrugada, foi Walter Benjamin, a quem ela conhecia de Berlim. (Lisa só soube dias depois que ele se suicidara no hotel em Port-Bou.)

Ao saber do sucesso na condução difícil e temerária de Benjamin, Hirschman e Fry pediram a Hans, ainda em Marselha, uma reunião com Lisa. Graças a Hirschman, o encontro não fracassou. Fry pediu ao casal que ajudasse a atravessar os seus refugiados e, a certa altura, quando os Fittko falavam alemão com Hirschman, talvez por entender mal a língua, ofereceu-lhes dinheiro. Indignado, Hans agrediu-o verbalmente: “Você sabe que atravessar a fronteira ilegalmente tem pena de morte? Sabe o que é um antifascista? Conhece o sentido da palavra convicção?” Hirschman interveio, conciliador e incisivo: “Ouçam, ele não conhece vocês. Vocês não podem esperar que ele conheça a Resistência alemã. Ele considera justo que vocês sejam pagos”.

No final chegaram a um acordo. Os Fittko deixaram de lado seus planos de fuga e dezenas de passagens depois já seriam capazes de fazer o caminho de olhos fechados.

Obrigação humanitária

No final de 1941, o vice-cônsul americano Harry Bingham, um dos dois únicos oficiais consulares americanos que contrariavam as normas e ajudavam refugiados, perguntou a Hirschman, a quem só conhecia como Hermant, se sabia quem era Albert Otto Hirschman. Chegara um visto americano para ele. Absolutamente surpreso, pois nunca o solicitara – acreditava que ficaria na França – identificou-se. O documento chegara por intermédio da Fundação Rockefeller, graças a um professor da Universidade da California em Berkeley, com quem Hirschman trabalhara em Paris em 1938. O professor submetera um pedido de bolsa e visto, espontaneamente. Chegara a vez de Hirschman escalar a montanha, guiado por Hans até a fronteira espanhola. Construiria nos Estados Unidos sua brilhante carreira de economista e intelectual humanista.

“O que fizemos pelos refugiados na França se assemelha à obrigação dos soldados de trazer de volta seus feridos do campo de batalha, apesar do risco à própria vida. Ao menos tentar”, resumiu Hirschman.

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Judith Patarra é jornalista