Um dos escritores mais lidos no mundo durante a primeira metade do século XX, Stefan Zweig foi um notório entusiasta do Brasil. Viveu aqui seus últimos dias e discorreu sobre as razões de sua admiração em Brasil, país do futuro, publicado em 1941. Passados quase 71 anos de seu suicídio – cometido ao lado da mulher, Lotte, na residência do casal, em Petrópolis – o autor, cuja obra acaba de cair em domínio público, terá três títulos relançados pela Zahar Editora. O primeiro deles, Maria Antonieta: retrato de uma mulher comum, biografia da jovem rainha levada à guilhotina durante a Revolução Francesa, chega às livrarias nesta semana.
Quem coordena a coleção é o jornalista Alberto Dines, um dos maiores estudiosos da vida e da obra de Zweig no mundo. Paralelamente, Dines publica uma nova edição de Morte no paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (Rocco), biografia que dedicou ao escritor austríaco. As editoras Rocco e Zahar promoverão um lançamento conjunto para os dois livros, no próximo dia 17, na Livraria Cultura do Centro. A noite dedicada a Zweig terá ainda um debate com a presença de Dines e do escritor Affonso Romano de Sant'Anna.
Uma biografia sem ponto final
Publicada pela primeira vez em 1981, Morte no paraíso narra a trajetória de um artista obstinado em seu trabalho e cada vez mais angustiado diante da escalada totalitária na Europa. Um pacifista irremediável que, corroído pela descrença, resolve colocar um ponto final na própria vida ao ver seus ideais humanistas e internacionalistas destroçados por uma guerra que julgava a maior das irracionalidades.
Revista e ampliada em sua quarta edição, a biografia é uma obra de fôlego, com 736 páginas, fruto de uma pesquisa monumental que continua em desenvolvimento, movida pelo inesgotável interesse do biógrafo pelo escritor.
– A biografia é um longo trabalho de lapidação. Você não pode botar um ponto final na história de alguém como ele. Há sempre novas informações, novas implicações para o que ele escreveu- reflete Dines, que é presidente da Casa Stefan Zweig, em Petrópolis.
Retratando as andanças de um aclamado Zweig pelo mundo, o jornalista navega com segurança por uma história descrita pelo próprio biografado, em sua carta derradeira, como “uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a terra”.
Herdeiro de uma abastada família judaica, proprietária de uma indústria têxtil, Zweig nasceu em 1881, em Viena, na Áustria. Cresceu cultivado pelos ares intelectuais e internacionalistas da capital art nouveau do Império Austro-Húngaro. Ao longo da vida, foi amigo de figuras notáveis, como Freud, Herman Hesse (Nobel de 1941) e Romain Rolland (Nobel de 1915), seu mestre nas letras. Fascinou-se por personalidades históricas, como Erasmo de Roterdã, Fernão de Magalhães e Balzac, a quem dedicou biografias enriquecidas pela incorporação de elementos da psicanálise para traçar perfis que mergulhavam de forma inédita na subjetividade dos personagens.
– Ele tinha um grande fascínio por seres que considerava especiais, daí ter sido chamado de “caçador de almas”. Zweig, na verdade, se considerava mais uma espécie de mediador que apresentava essas figuras do que um grande escritor – analisa Dines. – Ele sempre brincou questionando a ideia de superioridade do gênio e inferioridade do homem tido como medíocre ou mediano. Muitas vezes, na obra dele, o derrotado em sua redenção atinge um valor humano maior do que o triunfador.
Zweig usou técnicas inovadoras
Grande sucesso comercial em sua época, e mais célebre entre as biografias escritas por Zweig, Maria Antonieta: retrato de uma mulher comum é a obra que inaugura a coleção “Stefan Zweig na Zahar”. Em setembro, a editora publicará também O mundo insone e outros ensaios e Três novelas femininas, que reúne “24 horas na vida de uma mulher”, “Carta de uma desconhecida” e “Medo”.
Lançada originalmente em 1932, a biografia é um retrato detalhado de uma personagem vista por Zweig como “a mulher mediana, de ontem, hoje e amanhã, sem pender para o demoníaco, sem ânsia pelo heroico”.
– É um trabalho biográfico excepcional, que faz uso de uma técnica moderna de narrativa, incorporando a psicanálise. Um retrato psicológico dela que chegou a ser elogiado pelo próprio Freud – explica Dines.
Mulher de Luís XVI, a austríaca Maria Antonieta subiu ao trono com apenas 18 anos, em 1774, recebendo demonstrações de apaixonada simpatia por parte do povo. Sentimento que, como demonstra Zweig, não soube retribuir – ou mesmo, do alto de sua aristocrática leviandade, ignorou que deveria retribuir. Amante do luxo, dona de hábitos extravagantes e completamente inábil para a política, a rainha acabaria se tornando a presa perfeita para uma intensa campanha contra a família real.
– Involuntariamente, Maria Antonieta acabou se transformando no grande alvo do ódio popular, simbolizando todos os malefícios do antigo regime. Zweig captou nela uma pessoa que, após ser condenada, morreu de cabeça erguida, com grande dignidade, revelando no final toda a sua grandeza.
No posfácio de Maria Antonieta, Dines copia alguns trechos do diário que Zweig manteve de forma inconstante ao longo da vida. Pouco antes de iniciar o processo frenético de pesquisa e escrita do livro, o escritor desabafava sobre a ascensão do nazismo em seu país: “Desconsolado com a política austríaca. É preciso anular a ideia de nacionalidade… Mas para onde ir…?”
Pouco depois, foi morar na Inglaterra, mas a guerra e a destruição também chegariam até lá. Em 1936, na sua primeira visita, passou apenas 12 dias no Brasil. Comparado ao inferno segregacionista que a Europa estava se tornando, o país pareceu-lhe um lugar pacífico, onde um povo miscigenado convivia harmonicamente. Deslumbrou-se.
– No Brasil, ele percebeu um traço importante da tolerância e da miscigenação. Achou que naquele momento, com o nazismo se expandindo, o Brasil tinha algo a dizer ao mundo.
No início da década de 40, Zweig retornou ao Brasil, para suas duas últimas temporadas, concluindo aqui Brasil, país do futuro. O livro causou polêmica, sendo atacado duramente por jornalistas que criticaram a relação amistosa de Zweig com o Estado Novo. O suicídio, em fevereiro de 42, surpreendeu a todos e ocorreu pouco depois de a Alemanha afundar o navio brasileiro Buarque. Do apogeu de sua descrença, Zweig entregou os pontos.
– Zweig nos deu um sobrenome: “país do futuro”. Mas foi mal entendido e acabamos incorporando isso de forma simplista. É uma pena que os últimos governos não tenham movido uma palha para resgatar sua obra – observa Dines.
Hoje em dia, Zweig é sensivelmente menos popular do que na época em que atraiu uma turba de jornalistas que foram recepcioná-lo ainda dentro do navio, na primeira vez que veio ao Brasil. Sua obra, porém, está entre aquelas de caráter indemodable, ou “acima das modas”, como cita Dines no prólogo de “Morte no paraíso”.
– De tempos em tempos, Zweig retorna, ganha revivals. Atualmente, há um na França . Isso ocorre em parte por razões comerciais, mas também porque foi um escritor que refletiu sobre assuntos que continuam relevantes. Sua obra é fundamental para entendermos certos aspectos do mundo atual.
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Pedro Sprejer, do Globo