Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A História nos papéis e na web

Longas estantes de livros e periódicos empoeirados, guardados por séculos, devem dividir em breve as atenções das maiores bibliotecas do mundo com dados e literatura que ninguém vê. As bilhões de informações virtuais que se perdem no ciberespaço diariamente passarão a ser colecionadas como os papéis. A Biblioteca Britânica, em Londres, e outras cinco ditas “bibliotecas depositárias legais” ganharam, por lei, o direito de armazenar tudo o que é publicado online entre os milhões de tweets, status de Facebook ou blogs do Reino Unido todos os dias. É assim que se espera montar ao longo dos anos um retrato da sociedade que vá muito além dos impressos.

Ao Globo, Richard Gibby, líder do projeto na Biblioteca Britânica, afirma que este é mais um passo para aproximar as bibliotecas do movimento da indústria da publicação, cada vez mais voltada para a internet. Hoje, o tempo médio de vida de uma página web é de 75 dias e, por isso, informações que podem ser preciosas simplesmente acabam perdidas para sempre.

– Há coisas que só estão na internet, como as manifestações mais imediatas do cidadão comum. Esta é uma forma de captar a História de uma maneira absolutamente inédita. Será um retrato da sociedade a partir do que um indivíduo estava pensando ou fazendo – explica ele.

A visão do cidadão comum

Segundo o especialista, quase não há mais registros, por exemplo, de como os indivíduos receberam a crise financeira global, desencadeada nos Estados Unidos em 2008, e que acabou acertando em cheio o Reino Unido. Tampouco há documentação suficiente sobre as diversas reações da sociedade nas redes sociais britânicas aos preparativos ou à realização dos Jogos Olímpicos em Londres.

– Queremos guardar as informações que servirão para que os nossos netos e os netos deles entendam o que estava acontecendo num dado momento histórico – destaca Gibby.

A meta do primeiro ano do projeto, que já começou, é reunir nada menos que um bilhão de páginas na internet. Para se ter uma ideia, todos os periódicos que a Biblioteca Britânica vem colecionando, diariamente, nos últimos 300 anos, não renderiam mais do que 750 milhões de páginas na web. A comparação dá a dimensão da ousadia do programa britânico, que não é o primeiro do mundo, mas, por enquanto, é considerado o mais abrangente.

A morte da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher, cremada na última quarta-feira, deve ser o primeiro fato histórico a ser captado pelo programa.

– Teremos reações históricas, positivas ou negativas, que vão muito além do que poderemos ler nos livros. É a história vista pelo cidadão comum e não escrita por uma elite intelectual – observa Simon Tanner, vice-diretor do Departamento de Mídia Digital da King's College em Londres, e um dos pesquisadores responsáveis pela elaboração da nova lei, que levou dez anos em discussão.

Nos últimos séculos, lembra o professor, nem mesmo os documentos físicos mantiveram-se a salvo, seja de acidentes naturais ou da mão do próprio homem. No futuro, muitos terão sobrevivido por acidente, outros terão sucumbido a ditaduras, bombas, incêndios ou inundações.

– O importante é que, se não começarmos a capturar os dados da internet agora, já era – enfatiza ele.

Os internautas até têm consciência de que às vezes exageram no tempo que perdem diante das redes sociais ou dos emails. Muitos mal conseguem atravessar a rua para não perder a chance de compartilhar quase que instantaneamente um momento que consideram importante. Mas não fazem a menor ideia da quantidade de informação que produzem todos os dias. São 300 milhões de tweets e 350 milhões de fotografias armazenadas no Facebook diariamente, de acordo com as pesquisas do professor da King's College.

– Somente as imagens armazenadas pelo Facebook em um ano equivalem a mais do que todos os registros da história da fotografia – afirma Tanner.

Além de evitar a perda de conteúdo, que sumiria do ciberespaço com o tempo de validade das páginas, a nova lei também protegerá os dados de certas manipulações. Como exemplo, o professor cita o caso dos históricos discursos que o ex-político do partido trabalhista britânico Robin Cook mantinha disponíveis gratuitamente para consulta na internet, e que foram tirados da rede pela família logo após a sua morte, em 2005.

– Os pesquisadores, agora, precisam confiar nos dados liberados pelo espólio – lamenta.

Papel ainda em alta

O entusiasmo com a aproximação do mundo digital e, agora, a permissão para que se armazenem as informações virtuais traz de volta a recorrente discussão sobre o fim da era do papel. Será a capacidade de guardar as informações virtuais a última barreira para se decretar de vez o fim do papel? Para Gibby, ninguém está querendo acabar com o papel:

– Há apenas muita informação boa na internet e que queremos ter também.

Já Tanner não descarta essa possibilidade a longo prazo. No entanto, a previsão para os próximos dez a 20 anos é que as pessoas comprem cada vez mais papéis. O especialista afirma que todos os anos a população gasta mais dinheiro com a aquisição de impressos:

– Anuncia-se o fim do papel desde a década de 1970 e ele está aí. As pessoas adoram papel.

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Vivian Oswald é correspondente do Globo em Londres