O pai empenhado na educação do filho pequeno chega trazendo três grossos livros. Coloca-os sobre a cadeira e o garoto senta-se em cima deles, ficando na altura adequada para acessar o computador que está sobre a mesa. É o criativo gimmick que um gênio publicitário imaginou para dar brilho a um comercial de TV de 30 segundos amplamente veiculado em horário nobre. Pausa. Quem não ficou chocado com essa história tristemente verídica e conferível nos intervalos do telejornal preferido pode parar de ler este artigo aqui mesmo, para não perder tempo. Pois vamos falar sobre coisas que estão fora de moda, como o livro, a julgar pela indigência intelectual que inspira essa peça que a empresa de telecomunicações anunciante teve a irresponsabilidade de aprovar.
Não tenho muitas dúvidas a respeito de que todo o conteúdo do tal comercial, inclusive a “brincadeirinha” com os livros, é perfeitamente compatível com, digamos assim, a “ética empresarial” que vale para todo o mundo dos negócios em que, acima de qualquer valor humano, predomina a implacável “razão de mercado”. Este é o mundo em que vivemos. Existem até algumas corporações que conseguem disfarçar a obsessão cega por metas de faturamento sob o manto da preocupação com sua “responsabilidade social”, à qual reservam alguns trocados das verbas de marketing e vendas.
É por todos os motivos imperdoável, porém, a tentativa irresponsável de desqualificar o maior símbolo universal do saber e do conhecimento, o livro, intenção óbvia por trás de um truque publicitário que pode parecer apenas bem-humorado. Queimar livros publicamente por motivos políticos sempre foi considerado crime hediondo pelo senso comum das sociedades democráticas. Desqualificar a imagem do livro por questões mercadológicas não é menos grave. Na verdade, convenhamos, é até pior, considerando o alcance e a eficácia da mídia usada.
Símbolo universal
Sou crítico contumaz da mentalidade argentária que domina hoje o mercado editorial no Brasil e no mundo, até porque entendo que livro é, acima de tudo, conteúdo. É claro, portanto, que as conquistas tecnológicas das últimas décadas oferecem novas formas, novas plataformas para desenvolver e publicar os conteúdos de toda natureza indispensáveis à formação e ao desenvolvimento humanos.
Mas as novas tecnologias digitais são tão recentes, de uma perspectiva histórica, que ainda é muito cedo para preconizar o advento “definitivo” de um sucedâneo para o livro impresso. Alguém se lembra do finado CD-ROM? Na segunda metade dos anos 1990 não faltaram novidadeiros que o apresentassem como “a nova e moderna forma do livro”. Atualmente os e-books podem ser considerados fortes candidatos a conquistar os consumidores de livros impressos. E o bom senso recomenda supor que, de fato, exista uma forte tendência a que isso ocorra num prazo que parece cada vez mais curto. Mas quem pode garantir que não surja amanhã um novo e revolucionário gadget que rapidamente transformará o e-book em peça de museu?
É Umberto Eco quem assegura: “Das duas, uma: ou o livro permanecerá o suporte da leitura, ou existirá alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes da invenção da tipografia. As variações em torno do objeto livro não modificaram sua função, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor do que uma colher” (Não Contem com o Fim do Livro, Record – 2010, página 16, tradução de André Telles).
Em artigo para esta página em que fiz a citação acima do escritor, linguista e bibliófilo italiano (“É o fim do livro? Rir para não chorar”, 16/7/2010), manifestei a opinião agora reiterada de que, apesar de sua imagem idealizada – às vezes, sacralizada – de fonte de lazer, informação, conhecimento, fruição intelectual, o livro, enquanto objeto, é apenas “o suporte da leitura”, o meio pelo qual o escritor chega ao leitor. E assim permanecerá até que “alguma coisa similar” o substitua. Por tudo isso, o livro, na forma como o mundo o conhece pelo menos desde o século 15, é e continuará sendo, até onde a vista alcança, o maior símbolo universal do saber e do conhecimento. Merece, portanto, no mínimo, respeito.
Supremo mandamento
Cabe ao livro de hoje, como caberá ao do futuro, a transmissão desde a informação utilitária indispensável à boa formação profissional até as indagações e reflexões sobre o sentido da vida que passam, por exemplo, pelas experiências emocionais de quem compartilha conosco a condição de ser humano. Tudo isso faz parte daquilo que precisamos saber, conhecer, para entender quem somos e o mundo em que vivemos e, assim, nos realizarmos como seres humanos. É, digamos, um pouco mais do que o ideal de possuir uma casa “com um carro na garagem”, que os fundamentalistas do mercado imaginam como o suprassumo da ambição dos viventes.
Essa visão humanística do mundo pode parecer um tanto fora de moda, mas só estará realmente sepultada – sob sete palmos de ignorância – no momento em que a estultice dos homens lograr o intento de destruir a imagem do livro como maior símbolo universal do saber e do conhecimento. Muita gente dentro do próprio mercado livreiro, mais propriamente dentro do big business editorial, aqui como lá fora, já está fazendo um bom trabalho nessa direção ao mediocrizar impiedosamente os conteúdos que publica em nome do mandamento supremo de que livro bom é livro que vende bem.
A continuar assim, em breve o publicitário e seu cliente para quem os livros só são úteis quando empilhados poderão proclamar, orgulhosos, a confirmação de seus poderes proféticos. E estaremos então penetrando as trevas, depois de percorrer vários tons de cinza.
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A. P. Quartim de Moraes é jornalista