Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O início do ocaso de ‘UH’ e do governo Vargas

Alguns anos atrás, fiquei muito satisfeita de participar da banca de doutorado que analisou a tese de Aloysio Castelo de Carvalho e já pensei vê-la posteriormente convertida em livro tal a importância do tema e da abordagem conferida ao mesmo pelo autor. Hoje a satisfação é dupla. Prazer de ver entregue a um público maior um trabalho acadêmico de grande densidade e que não perde o vigor ao ser convertido em obra a ser publicada e gosto renovado pelo privilégio de poder apresentá-la nesses novos trajes.

Eu mesma estudei o jornal Última Hora – UH para o meu doutorado e realizei uma comparação com outro grande jornal (O Estado de S. Paulo – OESP) em outro período histórico, no pós-regime militar e, no momento em que fiz os meus agradecimentos, veio à tona a semelhança entre os gigantes e lancei mão de uma frase de um grande cineasta, John Ford, no famoso filme O homem que matou o facínora: “Quando a lenda é mais forte que a história, imprima-se a lenda.”

Acredito que isto sempre foi verdade quando se tratou do jornal Última Hora, mas não porque se tratasse de uma lenda no sentido de ser historicamente construída, mas sim, por ser uma lenda no jornalismo, tal a plenitude das transformações que empreendeu e sua importância para a imprensa nacional. Neste quadro podemos dizer que é antes e depois dele. Estamos afirmando que não importa de onde vieram os capitais para o seu financiamento. A magnitude das transformações que ele impulsionou é de molde a criar um novo perfil para a imprensa nacional. Cores, diagramação, apresentação das matérias e por aí vai. A imprensa nacional era uma e se transformou literalmente em outra. É isto que importa e isso ficou para a posteridade.

Os jornais e as “massas”

No entanto, como sabemos, a história é filha do tempo e a ele está presa, sofrendo as suas vicissitudes. Portanto, “no meio do caminho havia uma pedra” e a pedra a que nos referimos, especificamente no que diz respeito a esse trabalho, se desenvolve, no chamado “caso do Última Hora”ou “CPI do Última Hora”, batalha travada em 1953 e que, como o trabalho aponta, representa um “cerco” não só ao jornal Última Hora, mas também, ao governo Vargas.

De forma magistral e detalhada, Aloysio Castelo de Carvalho disseca para o leitor todo o ambiente mesquinho criado em torno dos jornais O Globo, Tribuna da Imprensa e O Jornal, ressentidos pelo financiamento concedido pelo governo Vargas a Samuel Wainer para montar o Última Hora. O que começa com uma série de denúncias capitaneadas pelo inimigo mortal de Wainer, Carlos Lacerda que vitupera das tribunas, acaba por se transformar numa CPI, a CPI do Última Hora que leva junto, no mar de difamações, o governo Vargas que havia acedido na concessão dos empréstimos. Vem à tona o governo, visto como devedor de Wainer, pois em 1951 Vargas teria retornado como personagem público pelas mãos do empresário que o fora buscar em seu refúgio no Rio Grande do Sul.

Para narrar essa história a que não faltam lances de suspense o autor lança mão de três elementos fundamentais: o conceito de “opinião púbica”, a relação dos jornais envolvidos com os principais partidos (PSD, PTB, UDN – uma pitada de considerações para o Partido Comunista extinto), o posicionamento dos periódicos em relação aos trabalhadores e aos sindicatos – considerações sobre as “massas”.

“Tempos sombrios”

Em nossa concepção, é importante assinalar o que paira como grande fio condutor de todo o trabalho de Aloysio, o conceito de “opinião pública”. Algo que é extremamente caro aos jornais liberais que se pretendem, invariavelmente, “formadores de opinião”, é um conceito quase onipresente dentro da imprensa. E aqui aparece dentro de sua matriz frankfurtiana, ou seja, daquela concebida pela “Escola de Frankfurt”. Essa matriz, com a genialidade de seus criadores, apresenta um alerta. Do mesmo modo como seus autores apontaram para as questões preocupantes em relação à obra de arte apresentadas na reprodutibilidade técnica da fotografia, mostraram possibilidades de “reprodutibilidade de opiniões” em meios de comunicação de grande alcance, como, por exemplo, a imprensa escrita. O que estaria presente na ideia da possibilidade de um conceito de “formação de uma opinião pública” alvo perseguido pelos editores de jornais.

Os historiadores da Nova História Cultural, Michel de Certeau à frente, entretanto, apontam para o fato que, atrás do consumo dos produtos culturais existe a produção, ou seja, o consumo é único. Cada qual consome de forma própria, transformando o ato de consumir, ele mesmo, uma maneira de produção. Assim, a ideia de “opinião pública” como consumo fica deslocada. Acredito que esse seria o diálogo que o trabalho de Aloysio permite e instiga. Mais uma brecha que ele nos coloca e nos leva a pensar. Bons trabalhos são assim.

Por que eu recomendaria ao leitor um mergulho num passado, mesmo que não tão distante, mas que para as gerações mais jovens já produz o distanciamento? Por que, enfim, é imprescindível ler o trabalho de Aloysio Castelo de Carvalho? O tempo de que ele nos fala é um tempo muito presente e eterno. É um tempo, como nos diz Hannah Arendt, de “homens em tempos sombrios”, afinal “homens e suas circunstâncias” que são “nada mais que humanas”, o que quer dizer que situações semelhantes que oporão mesquinhez e grandeza ou as mesclarão poderão ser encontradas em passados distantes ou no futuro remoto. Isto torna este O caso Última Hora e o cerco da imprensa ao Governo Vargas, de Aloysio Castelo de Carvalho, absolutamente, imprescindível.

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Maria Aparecida de Aquino é professora do Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie