“Regulação” é um conceito imprescindível para a vida humana, pois, ainda que seja um substantivo abstrato, tem uma dimensão prática que está impregnada na vida cotidiana do ser humano, tanto em sua dimensão biológica como na social. A água, por exemplo, é uma composição química essencial a sobrevivência do homem, porque, entre outras coisas, permite a regulação da temperatura corporal. Assim, quando o nosso corpo está superaquecido, as glândulas sudoríparas eliminam suor para que, ao evaporar, ele retire calor do corpo, fazendo-o voltar ou se reaproximar da temperatura ideal. Quando alguém está com problemas intestinais, o médico sempre recomenda ingerir alimentos e/ou medicamento que regulam as atividades do intestino, fazendo com que ele volte a funcionar harmoniosamente. Portanto, regular alguma coisa significa colocar em equilíbrio ou em ordem determinados fatores ou aspectos que estão envolvidos no funcionamento dessa coisa. O termo “regulação” no latim está associado à palavra regularis, que significa barra, régua ou vara reta, objetos que permitem fazer a medição das coisas, permitindo que tenhamos somente aquilo ou a quantidade que necessitamos. Não por acaso, regulação está também associada ao verbo regere, que corresponde a colocar em ordem ou em controle. Nesse caso, o controle não pode ser excessivo ao ponto de levar ao desequilíbrio ou a desarmonia do sistema.
No âmbito da vida em sociedade, igualmente, a regulação é um fator indispensável, pois garante o equilíbrio entre os poderes e as forças políticas. Nas democracias capitalistas ocidentais, o Estado assume, idealmente, a função de mediar e equilibrar as relações de poder dentro de preceitos democráticos. Todo e qualquer direito, seja ele civil, político ou social, só é possível por meio da regulação, pautada em normas e leis. Os direitos sociais, por exemplo, vão ser implementados na primeira metade do século XX para se contrapor as enormes desigualdades sociais geradas pelos princípios liberais.
No seu décimo e mais recente livro, Regulação das Comunicações, o sociólogo e jornalista Venício Arthur de Lima faz uma defesa veemente da regulação da mídia como um dos pilares para o fortalecimento e avanço da democracia brasileira. Nas três partes que compõem a obra, os argumentos foram construídos e dispostos com o intuito de revelar o poder e a centralidade da mídia no âmbito da política e na vida social em geral e, sobretudo, de mostrar que há no Brasil uma relação de poderes bastante desequilibrada e desigual no que diz respeito ao setor das comunicações. O mercado brasileiro de radiodifusão [Entendida pelo autor como “o conjunto de instituições que utiliza tecnologias específicas para ‘intermediar’ a comunicação humana […] um tipo específico de comunicação, realizado através de instituições que aparecem tardiamente na história da humanidade e constituem-se em um dos importantes símbolos da modernidade” (LIMA, 2011, p. 152). Segundo Lima, esses meios de comunicação são marcado por duas características: unidirecionalidade e produção centralizada, integrada e padronizada de conteúdos.]foi estruturado, em grande parte, sob os auspícios de governos autoritários, que o fizeram de forma a atender os interesses das suas ideologias [Refiro-me aos períodos do Estado Novo (1937 – 1945) e da ditadura militar (1964-1985)]. De lá para cá, pouca coisa daquela estrutura foi alterada, de modo que ainda há um enorme déficit de democracia no campo das comunicações.
Bem público
A primeira parte do livro – “História” – reúne três capítulos que relatam momentos políticos importantes das políticas de comunicação e da relação entre comunicação e política no Brasil. No capítulo 1, Lima explica didaticamente as principais características do modelo brasileiro de regulação da radiodifusão e destaca os principais atores que agem sobre o setor. Posteriormente, o pesquisador faz uma análise das políticas públicas propostas e implementadas no governo Lula e conclui que, ao contrário do que se esperava de um governo dito popular, não houve mudança estrutural no setor, ainda que tenham acontecido alguns avanços pontuais, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), a regionalização das verbas de publicidade oficial e o lançamento do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). “Um balanço do período de 2003-2010 revela, sem dúvida, que houve avanços. Por outro lado, é também inegável que não se avançou e houve até retrocesso em algumas áreas fundamentais “(LIMA, 2011, p. 49).
Ao destacar os atores que agem sobre o setor das comunicações, é possível questionar o posicionamento do autor de classificar como “não atores ” as organizações da sociedade civil, por não serem “capazes de exercer influência significativa” ou por não ter peso “na correlação de forças que define as políticas do setor”. Ainda que as assertivas estejam baseadas na análise histórica que Lima faz, o desequilíbrio de forças não representa necessariamente um não agir dessas instituições. Aliás, essa correlação desigual é típica de qualquer Estado capitalista e ainda mais marcada em países de perfil patrimonialista, como é o caso do Brasil. A atuação da Federação Nacional dos Jornalistas – Fenaj- durante os debates da Subcomissão de Comunicação no âmbito da Assembléia Nacional Constituinte foram de importante relevância para a redação final dos artigos que dizem respeito à Comunicação Social, ainda que, em sua maioria, as propostas da Fenaj tenham sido derrotadas. Ao colocar o termo entre aspas ( “não atores"), Lima parece querer chamar mais atenção para o fato de que o Estado brasileiro não incorpora e não dá importância significativa as contribuições dessas entidades, o que seria típico em um Estado democrático de direito.
O capítulo 2 descreve como foram feitas as concessões para a prestação do serviço de radiodifusão durante o período de redemocratização do país, seguindo critérios estritamente partidários e personalistas, além de fazer uma análise das discussões sobre a Comunicação Social durante a Assembléia Nacional Constituinte. Lima esclarece como a presença de políticos radiodifusores, aliados a ala conservadora, no âmbito da Subcomissão de Ciência e Tecnologia e de Comunicação foi determinante para a derrubada das propostas da ala progressista, vinculada às demandas populares. Uma importante contribuição da obra é esclarecer, ponto a ponto, quais eram as propostas iniciais do texto apresentado pela relatora Cristina Tavares (PMDB-PE) e como elas foram, uma a uma, sendo alteradas no intuito de garantir os interesses dos donos de meios de comunicação e dos políticos a eles vinculados. Encerrando a Primeira Parte, o capítulo 3, “Imprensa e poder político depois de 1930: Casos exemplares”, relata casos importantes de interferência direta da mídia em processos e decisões políticas. Nesse sentido, é interessante salientar que, embora, muitas vezes, no âmbito científico as discussões sobre políticas de comunicação e comunicação e política pouco dialoguem, o livro de Lima contribui também para mostrar como essas duas perspectivas estão intrinsecamente relacionadas.
A segunda parte do livro – “Poder” – é composta de cinco capítulos que mostram como as características do modelo de regulação brasileiro foram politicamente construídas de forma a permitir que a mídia alcançasse um poder quase sem limites. Assim, no capítulo 4 é realizada uma síntese, em seis pontos, que permite uma melhor compreensão de como a uso das outorgas de radiodifusão como “moeda de troca” levaram ao fenômeno do “coronelismo eletrônico”. Já o capítulo seguinte, “O princípio da complementaridade”, é dedicado a desconstruir e desmascarar um argumento perigoso que os empresários de rádio e televisão têm adotado recentemente para tentar desvincular a prestação deste serviço da idéia de interesse público. [Em Audiência Pública realizada, em novembro de 2008, pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, o representante da Associação Brasileira de Emissora de Rádio e Televisão (Abert) afirmou que “os concessionários comerciais não precisam atender todo o público, uma vez que pertencem ao sistema privado”. Ou seja, os sistemas que deveriam ter o comprometimento com o interesse o público seriam apenas o público e o estatal.] Contrapondo-se a este posicionamento, Lima lança mão de depoimentos do deputado constituinte Arthur da Távola, responsável por introduzir na Constituição o princípio da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal, para mostrar que do objetivo do constituinte era “corrigir o inquestionável desequilíbrio histórico existente entre esses sistemas” devido a forte hegemonia do sistema privado já consolidada na época. O intuito do legislador não foi fazer uma diferenciação de critérios que devem ser atendidos por cada um dos sistemas, afinal o espectro radioelétrico é sempre um bem público.
Detalhes históricos
No capítulo 6, “Coronelismo Eletrônico de Novo Tipo”, escrito em parceria com Cristiano Aguiar Lopes, os autores retomam o conceito de “coronelismo”, do jurista e professor Victor Nunes Leal, e as discussões sobre “coronelismo eletrônico” para caracterizar uma atualização deste último, o “coronelismo eletrônico de novo tipo”. Esse fenômeno é marcado pela utilização de outorgas de rádio comunitárias como “moeda de troca”, o que, devido à capacidade de atuação local dessas emissoras, permite a municipalização do vínculo entre emissoras de radiodifusão e políticos profissionais. Por meio de uma vasta pesquisa empírica que analisou dados do período entre 1999 e 2004, os autores comprovaram que 50,2% das autorizações de radiodifusão comunitária possuíam vínculos políticos.
Se, nos estudos anteriores, comprovava-se que a utilização política de emissoras de radiodifusão era algo típico de deputados federais, senadores e governadores – o que era chamado de coronelismo eletrônico –, nossa pesquisa comprova que agora também prefeitos e vereadores têm parcela significativa de domínio sobre a mídia eletrônica (LIMA, 2011, p. 142).
Em “Grande Mídia Vs. Nova Mídia na Política Brasileira” (capítulo 7), Venício Lima faz uma brilhante análise do impacto da internet na redução do poder da “grande mídia” na política do país. Já no capítulo 8, que encerra a Segunda Parte, tem-se acesso a um estudo da cobertura do mais importante jornal da capital federal, o Correio Braziliense, sobre o surto da febre amarela silvestreque aconteceu em alguns estados do país entre dezembro de 2007 e fevereiro de 2008. A pesquisa ilustra como a ausência de regulação sobre os meios de comunicação e a incapacidade do Estado brasileiro de disseminar informações corretas podem acarretar graves problemas sociais, inclusive envolvendo questões de saúde pública.
A Terceira Parte – “Direitos” – busca reaproximar o conceito de cidadania do debate sobre o direito à comunicação. No capítulo 9, “Comunicação, Poder e Cidadania”, o autor parte das idéias do sociólogo britânico T. H. Marshal para mostrar que o exercício do poder está atrelado à capacidade de produção simbólica, de modo que, no mundo contemporâneo, uma mídia democratizada se constitui condição imprescindível para a realização efetiva dos direitos políticos. Neste sentido, na entrevista disposta no capítulo seguinte, o autor salienta que é impossível o exercício da cidadania plena sem a existência de “uma alternativa à grande mídia que possibilite a pluralidade, a diversidade, o exercício do direito à comunicação pela maior parte da população” (LIMA, 2011, p. 233). No texto que encerra o livro (capítulo 11), busca-se desmontar os argumentos da “grande mídia” brasileira contra as propostas do III Programa Nacional de Direitos Humanospara o setor das comunicações. [O Programa foi lançado pelo governo brasileiro em dezembro de 2009 e condenado publicamente por grande parte dos grupos empresariais da grande mídia.] Ao retornar aos debates iniciais que formularam a necessidade do direito à comunicação em âmbito internacional, o pesquisador lança sete argumentos mostrando que o Programa estava em consonância com os princípios democráticos e com a legislação brasileira e que, na verdade, o que constitui, de fato, uma ameaça à liberdade de expressão é o monopólio de poucos grupos empresariais sobre os meios de comunicação.
Ainda que didaticamente separadas, as três partes do livro estão intrinsecamente relacionadas e reiteram a necessidade da regulação das comunicações para o avanço da democracia no Brasil. Não há liberdade de expressão sem direito à comunicação. No caso brasileiro, esta liberdade ainda é limitada pelo controle que alguns poucos grupos de mídia fazem da produção de informações. A leitura da obra permite concluir que não é possível que haja liberdade e pluralidade de opiniões sem que haja uma ação positiva do Estado no sentido de garantir que o máximo de atores sociais se apropriem da capacidade técnica e qualitativa de difundir suas produções simbólicas.
O texto traz ainda uma série de detalhes históricos que subsidiam ainda mais o cidadão na compressão da modelagem brasileira de regulação das comunicações. A linguagem acessível é um importante passaporte para que o livro rompa as barreiras da academia. Há de se corroborar com Bernardo Kucinski quando ele afirma, no texto que prefacia a obra, que as contribuições de Venício Lima nesse livro são obrigatórias nos debates sobre a regulação das comunicações e sobre o direito à comunicação.
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[Rodrigo Braz é mestre e doutorando em Comunicação no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília]