Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em busca dos mortos da guerrilha

Uma das máximas da história contemporânea assegura que ‘só padece de solidão quem se isola das lutas de seu tempo’. O escritor e jornalista Aluízio Palmar, a julgar pelo que conta o livro Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?, com certeza, não se isolou de algumas das mais arriscadas batalhas de seu tempo: a de uma geração que, cercada pela repressão do regime militar, optou pela guerrilha.

A história é simples e, na medida em que é contada por um dos participantes ativos da resistência aos governos militares do Brasil, traz ao leitor uma riqueza de detalhes, capaz de convencer também pela lógica e coerência de dados apresentados ao longo do livro.

Em 1974, exatamente no ano em que a ditadura começava a mostrar sinais de esgotamento, o então governo do general Ernesto Geisel tinha que administrar a fragilidade das promessas do milagre econômico e, ao mesmo tempo, registrava uma derrota eleitoral para a oposição, quando os candidatos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB, um dos dois únicos partidos oficiais, além da Arena): nas eleições de novembro/74 o MDB conquistava 59% dos votos para o senado, 48% para a Câmara dos Deputados e vencia em 79 das 90 cidades com mais de 100 mil habitantes.

‘Que trágico!’ – lamenta o autor, ao ilustrar o cenário – o grupo caiu justamente num momento em que já se podia vislumbrar possibilidades de fuga e resistência: ‘Nossa guerrilha não aconteceu, vieram a prisão, as torturas e o exílio. No momento em que a maioria dos exilados já havia desistido da luta armada, Onofre Pinto, José Lavéchia, Daniel e Joel Carvalho, Victor Ramos e Enrique Ernesto Ruggia voltaram ao Brasil sonhando com a implantação da guerrilha ao estilo do Che’, conta Palmar.

E por que essa ousadia? É o próprio autor quem responde: ‘A gente sonhava com a revolução continental e punha em prática a palavra de ordem guevarista de criar um, dois, três vietnãs’ (p. 336).

Idealistas, generosos

A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), conhecida pela ação guerrilheira de dois grandes nomes da resistência brasileira (Lamarca e Marighela), tinha o ex-sargento Onofre Pinto como um das referências míticas do período militar. O comandante foi, entretanto, o último dos guerrilheiros a ser executados entre o grupo dos seis militantes da VPR que caíram em uma armadilha montada por um informante (ex-preso político, que aceitou entregar companheiros em troca de regalias concedidas pelo governo militar), Alberi Vieira dos Santos.

No dia 11 de julho de 1974, um grupo de seis militantes da VPR saiu de Buenos Aires, diante da promessa de Alberi Santos de que a melhor entrada para o Brasil seria uma base de apoio da resistência em Santo Antônio do Sudoeste (PR). No dia seguinte, quando chegaram ao sítio de Niquinho Leite, os viajantes descansaram da longa viagem (mais de 24 horas, entre um ônibus e carro enviado para encontrá-los). Longe de ser uma base de apoio, o local e o plano eram uma armadilha para dar fim ao grupo de militantes. ‘O sítio não era da VPR; Niquinho era um inocente útil usado pelo sobrinho (Alberi); Otávio, um membro do Centro de Inteligência do Exército; e Alberi, o cachorro que estava levando-os para uma armadilha… Durante a viagem, desde que saíram de Buenos Aires, os exilados foram monitorados por agentes do CIE (Centro de Informações do Exército)’, conta o autor (p. 215).

Enganados por um ex-militante (Alberi), o grupo acreditou que o plano estava bem traçado: ‘atravessar o rio, apanhar as armas que estavam no esconderijo localizado à beira da Estrada do Colono e tocar em direção a Medianeira, onde seria feita a expropriação. Depois da ação eles voltariam para o acampamento e esperariam por Onofre. A confiança em Alberi era cega e todos se sentiam como os novos guevaras, guerrilheiros heróicos que instalariam o foco guerrilheiro que iria deflagrar outros tantos, surgindo em seguida a coluna guerrilheira que, apoiada por camponeses, operários e setores da classe média, libertaria o Brasil do jugo dos militares entreguistas e instalaria a república socialista’. A avaliação de Palmar, em forma de comentário, parece bem ilustrativa: ‘Eles eram idealistas, generosos e estavam embriagados de utopia…’ (p.218).

Indiferença e silêncio

Levado de balsa para o outro lado do Rio, em plena mata fechada do Parque Nacional do Iguaçu, o grupo desceu da Rural e, sem condições de esboçar reação, foi literalmente fuzilado por militares do grupo de extermínio, há cerca de seis km na Estrada do Colono. ‘No chão, entre folhas e entrelaçado por cipós, o jovem Enrique Ernesto Ruggia ainda estava vivo e, tal como o Che, teimava em perseguir seu sonho de libertar a América Latina do domínio norte-americano e implantar o socialismo’ (p. 219)

Depois de muitos relatos, pesquisas, checagem de informações e investigação, o autor descreve inclusive o modo como o jovem estudante argentino, de apenas 18 anos, foi executado: ‘A ordem era matar, e uma descarga final de pistola tirou o último sopro de vida de Enrique Ruggia. Em seguida, os soldados carregaram os corpos ainda quentes e os jogaram numa cova que haviam preparado no finzinho da tarde’ (p. 222).

A história, aparentemente simples, poderia render apenas uma reportagem com poucas páginas. Mas, para chegar a esta conclusão, o autor enfrentou incontáveis dificuldades, indiferenças e estratégias de silêncio que dificultaram o trabalho de investigação. Até localizar o motorista que conduziu o grupo ao local do extermínio – a Estrada do Colono, no meio da mata do Parque do Iguaçu – Palmar colecionou depoimentos de pessoas que, temendo represálias, não queriam nem se identificar, familiares querendo esquecer a trágica experiência da repressão da ditadura, além de ex-agentes aposentados que em nada facilitaram a busca de uma história de uma execução marcada por delação, promessas de planos de resistência e traições que resultaram na morte de seis militantes da VPR em julho de 1974.

O destino

Assim, mais de 25 anos depois de voltar ao Brasil, o autor conseguiu localizar o motorista da Rural que levou o grupo para uma viagem sem volta: ‘Em Foz do Iguaçu, localizei por meio de alguns amigos o endereço do ex-militar e testemunha do massacre. Tentei contato, porém Otávio Camargo não quis falar comigo… Aceitou falar com dois amigos meus de longa data. Um é empresário e o outro policial federal. Aos dois ele contou nos mínimos detalhes como aconteceram as mortes e indicou o local da chacina’, explica Aluízio Palmar (p. 211).

Chegava ao fim, então, a busca que o autor realizou de forma incansável, mobilizando familiares e amigos, sempre com recursos próprios, por pistas para descobrir o destino dos corpos de ex-companheiros que, como indica a pesquisa, estão enterrados em algum lugar na fechada mata do Parque Nacional do Iguaçu, extremo Oeste do Paraná, fronteira com o Paraguai e a Argentina.

Além da preocupação com a história e a angústia em não calar diante do silêncio forjado pela repressão, o autor tinha uma motivação particular: ‘Queria saber como e qual seria meu destino, caso eu também tivesse acreditado no plano apresentado por Alberi Santos em Buenos Aires’, em Julho de 1974, explica Palmar.

Tensão e ousadia

O relato do autor revela bem as constantes e necessárias fugas para não cair nas garras dos órgãos das ditaduras latinas no Mercosul. Caminhos, riscos e experiências que rendem bem mais que um longa metragem cinematográfico. Confira um dos relatos do autor:

‘Um pouco antes de montar a tornearia com os panamenhos, levei Eunice e Florita (esposa e filha) para morar comigo em Posadas. Aquela foi uma época muito difícil. A capital da Província de Misiones estava repleta de espiões das ditaduras do Brasil e do Paraguai. Até o braço da temível Direção de Inteligência Nacional (Dina), a polícia secreta da ditadura chilena, chegou por lá. Sabia que, apesar dos meus cuidados, mais cedo ou mais tarde podia acontecer uma desgraça. A Operação Condor já havia sido criada e os perdigueiros andavam por todo lado xeretando a vida das pessoas.

Corria o ano de 1974 e além dos serviços de espionagem das ditaduras latino-americanas a gente tinha também de se cuidar da organização de extrema-direita Triple A. Quanto aos espiões não havia problema. Eles passavam todo o tempo jogando sinuca no Hotel Savoy. Perigosos mesmo eram os fascistas acobertados pela direita peronista. Na voracidade de aniquilar os Montoneros ou a Juventude Peronista eles podiam acabar pegando a gente por tabela’. (p. 303)

Riscos que, aliás, ameaçavam a vida de toda a família de Aluízio Palmar e, pois, deixavam o próprio autor em momentos de tensão e ousadia constante. É o que revela o livro:

‘(…) Vivi todo esse terremoto morando clandestinamente na Argentina durante aqueles anos negros e sangrentos da década de 70. Depois que a situação embraveceu em Posadas, juntei mulher, filha e nossa pouca tralha e nos mudamos para a cidade de Resistência, na província do Chaco. Sem eira nem beira, mas movido pelo desespero de querer sair do cerco missioneiro, eu havia comprado um pouco antes uma fábrica de soda… Na noite em que nos mudamos para Resistência eu chorei. Sentia que estava preso a uma situação completamente adversa da que eu havia idealizado. Não podia voltar ao Brasil e tampouco para o Chile. Os golpes de Estado me encurralaram e tive que me adaptar a um novo estilo de vida. Já não era mais o revolucionário militante que estava no centro dos acontecimentos em conjunturas de intensa agitação política… Moramos cinco anos na cidade de Resistência e lá nasceram Andréa e Alexandre…’ (p. 304 e 305).

Na fronteira oeste

Ou, ainda, como afirma o próprio autor, ‘a maior oportunidade que a repressão teve de acabar comigo foi quando tive um encontro casual com o ex-sargento da brigada gaúcha Alberi Vieira dos Santos no centro de Buenos Aires. Eu havia saído de minha base na fronteira e ido à capital da Argentina para ter um contato com João Roberto Castro de Pinho’ (o Ceará, que havia saído do Norte PR para encontrar com Palmar num lugar seguro). P. 311

Depois que foi preso em Cascavel em abril de 1969, Aluízio Palmar foi levado para Curitiba, onde ficou no Presídio do Ahú, juntamente com estudantes, militantes de inúmeros grupos e organizações políticas da resistência (AP, MR8, VPR, etc). Em outubro do mesmo ano, Palmar foi transferido para o Rio de Janeiro, Presídio da Ilha Grande. Em 7 de janeiro de 1970, Aluízio foi para o exílio, juntamente com outros 69 presos políticos trocados pelo embaixador suíço e enviados para o Chile no Boeing-707 da Varig.

Estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense (UFF), Aluízio Palmar foi designado pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) para articular a guerrilha na fronteira oeste do Brasil/Argentina/Paraguai, no outono de 1968. Em Foz do Iguaçu o grupo de jovens foi orientado a desativar as bases do foco de resistência (que, na região, se resumia a dois sítios), onde o movimento estimava implantar ações de guerrilha.

Nove anos no exílio

A descrição da chegada na Fronteira é feita pelo próprio autor:

‘No outono de 1968 desembarquei na rodoviária de Foz do Iguaçu carregando uma imensa mala de couro, com manuais de guerrilha, livros do Régis Debray e Che Guevara, mapas da região, um revólver 38, um rifle de ferrolho e alguma munição. Fábio Campana (que, hoje, trabalha com jornalismo político em Curitiba, também havia rachado com o PCB e organizado a Dissidência Comunista no PR) me hospedou num quartinho nos fundos da Padaria Progresso, de Rodolfo Mongelos, localizada na Avenida Brasil. Começaram então os contatos da Dissidência Comunista com os colorados de esquerda’. (p. 269)

Ao longo do texto, que ilustra a crença e a aposta num projeto libertário, o autor também revela momentos de uma pertinente maturidade intelectual por meio de auto-crítica (p. 272): ‘éramos extremamente sectários na defesa da teoria de que um grupo de combatentes enraizados numa área rural, com um mínimo de infra-estrutura e combatendo esporadicamente, poderia mobilizar o país para a luta contra a ditadura e pelo socialismo’.

Em setembro de 1979, com a Anistia, Palmar volta ao Brasil, após nove anos no exílio e na clandestinidade, e vai fixar residência exatamente em Foz do Iguaçu. Na fronteira, desta vez, Palmar atua no Hoje Foz – ‘até que o jornal passa para o controle de um grupo de direita’ – e, em seguida (1980), juntamente com um grupo de profissionais, cria o semanário Nosso Tempo, que em pouco tempo chega a vender cinco mil exemplares em banca, graças a um projeto editorial independente e jornalisticamente ousado para a época. Com passagens por outros periódicos, além de colaborar em projetos diversos, o autor também passou pelas assessorias de comunicação social da Prefeitura e da Câmara de Municipal de Foz do Iguaçu.

Muita delação

A persistência, por anos em busca do destino que os militares e agentes do último regime ditatorial brasileiro do século 20 traçaram a um grupo de ex-companheiros da VPR motivou a pesquisa do autor por muitos anos, ao longo de mais de duas décadas.

A busca incessante, pesquisa histórica e uma investigação para além de incontáveis reportagens jornalísticas fazem do livro de Palmar uma obra insubstituível nas bibliotecas de escolas, em especial nas faculdades de história, comunicação, filosofia, direito, dentre outros cursos que prescindem de uma formação e informações sobre alguns dos absurdos que marcaram a história recente deste país. O livro é um, por isso tudo, uma verdadeira (e didática) aula de história contemporânea!

Um depoimento que torna presente um período de torturas, perseguições e mortes aos jovens e adultos que ousaram questionar e afrontar o poder instituído na base da farda, baioneta, gás lacrimogêneo, pau-de-arara, mentiras oficiosas e muita delação. Aluízio Palmar tem razão ao não deixar silenciar, história brasileira, a morte de seus companheiros em defesa por um mundo melhor. Mesmo que, tal projeto não tenha passado de uma utopia pouco viável, embora justa, ousada e digna de grandes ações de rebeldia.

Pela abertura dos arquivos

O livro é muito mais que um relato (auto) biográfico do autor na busca incansável por pistas sobre o destino dos corpos de ex-companheiros da resistência ao regime militar brasileiro. Trata-se de uma inédita colaboração à história contemporânea e, em especial, dos fatos que situaram a fronteira mais importante do Cone Sul num local estratégico de controle político, pelos governos da Argentina, Brasil, Paraguai, Chile (mesmo com a diferença e distância de alguns poucos anos), resultando num cemitério clandestino, ainda não totalmente descoberto.

Para concluir o livro, Palmar vasculhou o acervo de aproximadamente 20 mil documentos do arquivo da Delegacia da Polícia Federal de Foz do Iguaçu (p.120), acervos de periódicos, consultas a sites na internet, entrevistas a um incontável número de ex-agentes a serviço dos governos militares, familiares e amigos de ex-militantes que atuaram na clandestinidade, seja na tentativa de manter ações de resistência ou na luta pela sobrevivência humana. O estudo incluiu, obviamente, incontáveis viagens por cidades de diversos estados brasileiros (RS, SC, RJ, SP, MS, dentre outros), bem como dos demais países do Cone Sul (Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai).

Por tudo isso, o livro (numa abordagem que envolve relato jornalístico, memória e muita investigação histórica) merece uma leitura… de qualquer leitor que não se limite a acreditar que as atuais crises políticas da realidade brasileira conseguem mostrar a perversidade de autoridades (sejam civis ou militares) que conseguiram comandar ou silenciar, por vários anos, frente a tantas ações autoritárias. A propósito, por que será que o atual governo federal (popular?) não autorizou a completa e ampla abertura de todos os arquivos da história do país? Com a palavra, os aliados, amigos ou defensores das últimas gestões ou coligações de governo da República Federativa do Brasil.

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Jornalista, professor da UEPG, Paraná