Dentro dos vagões da linha 3 do metrô da Cidade do México e suas 21 estações (são 11 linhas, 4,7 milhões de passageiros por dia), o panorama era, até há pouco tempo, sempre o mesmo: passageiras entediadas distraíam a atenção com as chamadas ‘revistas del corazón’, ou seja, as de fofocas sobre artistas e celebridades. Os passageiros liam alguma revista em quadrinhos e levavam, talvez, bem escondida na roupa, uma revistinha erótica. Nada de livros, jornais ou revistas mais sérias. Esse panorama começou a mudar há poucas semanas.
De fato, enquanto 300 editores de revistas latino-americanas se reuniam para chorar as mágoas no Segundo Congresso Iberomericano do setor, organizado pela Federación Iberoamericana de Publicaciones Periódicas (FIIP) e pela Cámara Nacional de la Industria Editorial Mexicana (Caniem), o governo da Cidade do México deslanchava o programa ‘Para leer de boleto en el metro’ – algo como ‘para ler rapidinho no metrô’.
O programa, experimental, consiste na distribuição de 250 mil exemplares de uma antologia de contos, poesia e teatro de autores mexicanos, emprestados aos passageiros durante o trajeto. Os usuários chegam à plataforma e ali encontram uma estante com os livros à disposição. Pegam seu exemplar e o entregam no final de seu trajeto – ou podem levá-lo para casa e devolvê-lo no dia seguinte.
Plano do governo
Contrariando a costumeira malandragem latino-americana, e a Cidade do México não fica atrás, os novos leitores têm se comportado muito bem. Segundo a administração do metrô, a porcentagem de devolução é de 65%, sendo que todos os dias se distribuem entre 2.500 e 3.000 exemplares novos para manter abastecidas as 21 estações – entre 7h e 20h. Para surpresa ainda maior dos organizadores da iniciativa, muitos dos exemplares emprestados voltam encapados ou forrados com plástico.
Semana passada o metrô alterou o esquema, substituindo as antologias por folhetos de informação, limitando a entrega dos livros só a quem peça, os verdadeiros interessados, que assim se informam melhor sobre o conteúdo da antologia. Serão editadas pela prestigiosa editora Fondo de Cultura Económica, ao longo deste ano, outras seis coletâneas do mesmo gênero.
Os livros, a propósito, são comprados pelo metrô com verbas públicas, por meio de uma empresa privada que tem a concessão dos espaços de propaganda nos trens e estações. Os escritores recebem direitinho seus direitos autorais.
A promoção, embora seja bem aceita nos meios culturais e pelos próprios usuários do metrô, tem, para variar, segundo os adversários do chefe de governo da capital – Andrés Manuel López Obrador, do partido de esquerda PRD –, forte ingrediente político: de marcado estilo populista, Obrador já prepara sua candidatura presidencial para 2006, e ficar bem com os intelectuais, sempre críticos incômodos, seria parte de sua estratégia.
Nesta primeira rodada do programa entram escritores bem conhecidos do público leitor mexicano, como Carlos Monsiváis, Vicente Leñero, René Avilés Fabila, Emilio Carballido e Hernán Lara Zavala. O plano do governo da capital é distribuir 7 milhões de exemplares em dois anos – criando, espera-se, cerca de 500 mil novos leitores.
Analfabetos funcionais
Será mesmo possível isso, considerando as condições da leitura no país, onde cada cidadão só lê, no máximo, l,5 livro por ano, porque não dispõe de dinheiro para esse luxo da leitura? (O livro é caro no México, em média entre 10 e 20 dólares) Disso se queixam também os editores de revista mexicanos e seus vizinhos no continente.
De acordo com os participantes do Segundo Congresso de Editores de Revistas da região de 20 países onde vivem 500 milhões de pessoas, as perspectivas futuras do setor não são das mais encorajadoras. A ancestral insegurança política e econômica da América Latina dificulta o lançamento e a permanência de novos títulos.
No México, por exemplo, onde se publicam ao redor de 1.000 revistas de todos os gêneros, as mais vendidas, as realmente lucrativas para seus donos, são as semanais de fofocas de televisão e celebridades – TV y Más, TV Notas, TV Guia, TV y Novelas, Ooorale! – que, juntas, já batem no milhão de exemplares por mês, com um cardápio invariável e de gosto discutível: escândalos sexuais e histórias de amor dos ricos e famosos. Ao mesmo tempo, caem as vendas de revistas semanais de informação política e econômica (cinco, cujas principais são Proceso e Milenio), as de negócios e as de circulação limitada. Registra-se algum aumento nas femininas e nas de interesse geral.
‘É preciso encontrar estratégias que permitam reverter a diminuição do número de leitores’, adverte Andrezej Rattinger, diretor da revista Merca2, uma das três, todas de alto nível gráfico-visual, sobre publicidade e marketing que circulam no país (as outras duas são Creativa e Neo).
Uma dessas estratégias seria um sucedâneo da brasileira Caras, representada no Congresso por Edgardo Martolio, presidente do conselho da editora do mesmo nome. Graças à colocação no mercado de produtos como mochilas, discos, DVDs, edições especiais e livros, bem como a organização de encontros exclusivos com celebridades, nos últimos dez anos a revista Caras tem conseguido, diz Martolio, firmar sua posição no ramo e até aumentar em 33%.
O colombiano Alejandro Santos, diretor da revista Semana, apóia com restrições os conceitos do colega brasileiro, dizendo que essas estratégias comerciais podem até dar bons resultados, sem dúvida, mas o importante mesmo, para aumentar a circulação, é obedecer a um principio básico do jornalismo: oferecer informação de qualidade, reforçando a credibilidade da publicação junto ao seu público leitor. E quando se trata de usar um recurso comercial, por pura necessidade de sobrevivência, então que o leitor seja informado, num processo permanente de transparência.
Num comentário que certamente resume a diferença na problemática de livros e revistas, o jornalista cultural Humberto Musacchio, uma das penas mais ácidas da imprensa mexicana, fulmina:
‘Para começar, a publicação de revistas muitas vezes rende mais que a edição de livros. Portanto, uma das lições deixadas por esse congresso é que nada têm a fazer no mesmo barco os empresários de ambos tipos de impressos – revistas e livros. Ambos querem que as pessoas comprem suas publicações, mas é duvidoso que os dois grupos queiram contar com leitores. O livro precisa de gente disposta a se entregar ao exercício intelectual da leitura; o grosso das revistas não precisa mais do que analfabetos funcionais…’
Bibliotecas não faltam
No fundo, o problema da leitura no México vai muito além da falta de dinheiro ou dos níveis de analfabetismo do país. Trata-se, segundo os especialistas mais rigorosos, da carência de uma cultura relacionada com a boa leitura – base para a formação dos jovens leitores, principalmente. Na verdade, e isso é uma das ironias do problema, o México é, no continente latino-americano, um dos países mais avançados no setor de educação pública e preservação do patrimônio histórico-artístico, com iniciativas culturais de deixar babando americanos, europeus e até mesmo os vizinhos.
Publicação recente do Conaculta (Conselho Nacional para a Cultura e as Artes, espécie de ministério da Cultura), por exemplo, revela dados significativos sobre a infra-estrutura cultural mexicana: no país prevalecem as bibliotecas, 6.500, contra 2.823 cinemas, 1.146 livrarias, 1.058 museus, 544 teatros, 1.592 centros culturais. Noventa por cento dos municípios têm bibliotecas e só 1% da população vive em lugares onde não há bibliotecas.
Essa rede nacional de bibliotecas públicas, reconhece o Conaculta, embora seja considerada razoavelmente eficiente, sobretudo na distribuição racional dos pontos de leitura no país, pode e deve ser melhorada. O governo do presidente Vicente Fox, criticado com razão por escritores e artistas pela clara ausência de um projeto cultural sólido e definido, no fundo uma deplorável indiferença em relação a criação intelectual, anuncia que vai abrir mais 600 bibliotecas até o final de sua gestão, em 2006, além de aumentar os subsídios para os livros didáticos.
Mais ainda: para coroar seu período de governo, Fox deve inaugurar, no centro da Cidade do México, uma megabiblioteca, a ‘José Vasconcelos’ (grande intelectual mexicano), cujo edificio, desenhado pelo arquiteto Alberto Kalach e já em construção numa área de 37 mil metros quadrados, rodeada de jardins, vai custar 90 milhões de dólares e abrigar inicialmente meio milhão de obras; depois, ao longo de dez anos, entre 10 e 11 milhões de exemplares.
Isso do lado oficial. Quanto à iniciativa particular, os leitores mais devotados da Cidade do México não podem reclamar da ausência de boas livrarias e bons sebos. Só numa das avenidas mais conhecidas do bairro colonial de Coyoacán, rumo ao sul, a Miguel Angel de Quevedo, ao longo de um corredor cultural de quase dois quilômetros estão abertas – inclusive aos sábados, domingos e feriados – oito livrarias, duas delas de altíssimo nivel – a Gandhi e a do Fondo de Cultura Económica.
Numa única rua do centro, a Calle Donceles, existem dos dois lados das calçadas oito sebos muito bons – limpos, bem iluminados e bem organizados. Outros sebos mais modestos, mas nem por isso menos bem sortidos, espalham-se pelo chamado Centro Histórico da Cidade do México, sobretudo na Avenida Hidalgo.
Nas escolas
Na quinta-feira (5/2), o jornal madrilheno El País denunciou um problema muito sério na Espanha: a queda de 2,8% na leitura dos jornais diários, com a agravante de que os leitores remanescentes são cada vez mais velhos – gente entre 14 e 24 anos simplesmente não lê jornais, preferindo, obviamente, a internet.
Ainda assim é um bom negócio fazer jornal na Espanha, não há crise ou ameaça de quebras, mas o presidente da Associação de Jornais Diários Espanhóis, ele mesmo um famoso jornalista e especialista em comunicação, Juan Luis Cebrián, revela sua preocupação com essa falta de leitura entre os jovens e sugere algumas medidas para
pelo menos amenizar o problema – maior apoio fiscal às empresas e a criação de hábitos de leitura nas escolas, em forma de material didático.
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(*) Jornalista e escritor brasileiro radicado no México