Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Entre o drama da vida e a trama da história

Com o esmero habitual conferido pela Editora Rocco às suas publicações, ao leitor brasileiro chega a reedição de outra alentada obra de Alberto Dines. Sem trair a própria biografia, no tenaz jornalista se vê reforçada a imagem igualmente diligente do pesquisador. Como jornalista, Dines não abdica de assumir o perfil que Gilles Deleuze bem conceituou de ‘intercessor’, ou seja, fazer da atividade intelectual um modo de permanente intervenção no curso da realidade constituída (cf. Conversações. Ed. 34, 1992). Como pesquisador, também o autor não dispensa o olhar vertiginoso sobre a História. Amparado, portanto, nessa dupla face, Alberto Dines revisita a si mesmo, renovando uma obra que, já em sua versão primeira (publicação de 1981, pela Ed. Nova Fronteira), se mostrava densa e madura.

A experiência da auto-revisitação

Para um autor, não é decisão fácil aceitar, por vontade própria, refazer um trajeto antes percorrido, sem que algumas virtudes habitem o caráter do empreendedor. Entre elas, devem figurar despojamento, coragem e humildade. Saber-se incompleto, reconhecer-se à altura de um vôo ainda maior e, por fim, aceitar-se menor que a obra são condições impositivas ao processo contínuo na procura do auto-aperfeiçoamento. O autor, com a nova versão, ratifica ser portador de tais atributos. Após 23 anos, com o quanto essa temporalidade significa em possibilidade de aprimoramento, o leitor é contemplado com um livro pleno e atual.

Com o intuito de apenas situar a moldagem da presente resenha (melhor, talvez, artigo) caiba esclarecer algo. Resguardadas as incomparáveis diferenças numa escala infinitamente inferior quanto ao investimento das duas escritas (livro e resenha-artigo), devo informar o leitor de que também o resenhista se viu às voltas com a experiência da auto-revisitação. Como me ocorrera, ao longo de 1979, escrever, para o número 57 da revista Tempo Brasileiro, uma resenha sobre a sátira política E por que não eu? (Codecri, 1979), pequena e sarcástica novela de Alberto Dines, igualmente, para o número 68 da mesma revista, em 1981, coube-me resenhar a versão inaugural de Morte no paraíso: a tragédia de Stefan Zweig.

O exercício do olhar do resenhista que retorna à origem de uma experiência exige a captura daquilo outrora deixado à margem. Enquanto ao autor se impõem a soma e a multiplicação, em benefício da grandeza da obra, ao resenhista se oferecem a subtração e a divisão a fim de não incorrer em repetições. É, pois, sob orientação desse princípio que a resenha tomará um certo rumo.

O drama tramado

Se algo há a encantar tanto a sensibilidade de um biógrafo quanto o prazer de um leitor é quando ambos se descobrem diante de uma ‘persona’ cuja trajetória está assinalada por indissolúvel embate: o drama da vida x a trama da História. Nesse particular, a presente realidade brasileira encontra, no curso de 2004, pródiga oferta: Olga, na versão cinematográfica de Jayme Monjardim, o cinqüentenário do suicídio de Getúlio Vargas e a nova edição sobre Stefan Zweig. Os três, além de imbricados nos mesmos contexto e temporalidade, contêm, no enredo de suas vidas, a radicalidade da tensão mencionada.

Obviamente, não foi coincidência a escolha da época para a oferta da nova versão. Também nesse particular, Alberto Dines foi feliz, ao presentear o leitor com a obra no adequado clima das rememorações, não bastasse o requinte de promover o lançamento no exato dia e mês do cinqüentenário da morte de Vargas e no igual mês de lançamento do filme, bem como do também suicídio de Stefan Zweig, em ato cúmplice acompanhado por sua segunda mulher, Lotte.

Ampliada por uma esclarecedora iconografia e enriquecida pela inclusão 562 notas que se somaram às 438 da versão anterior, além dos inúmeros complementos redacionais a perpassarem os capítulos, a obra adquiriu revestimento e substância – acredito – agora definitivos. Seria pouco rentável ao interesse do leitor desfilar aqui mapeamentos comparativos quanto às alterações efetuadas. Assim, creio ser mais interessante desdobrar angulações reflexivo-temáticas decorrentes das provocações suscitadas pela trama que a sintaxe sinuosa da vida, sempre pronta a ameaçar a lógica das previsibilidades, impõe à existência daqueles seres que, recusando-se a transitarem simplesmente pela superficialidade do cotidiano, investem em compromissos, às vezes, para além de suas próprias forças, projetando-os na dimensão trágica da ‘desmedida’, conforme nos ensina a tragédia grega pelos escritos de Aristóteles.

‘Viver é muito perigoso’, uma das muitas frases sábias de Guimarães Rosa. Não menos instigante se revela Freud quando afirma: ‘A meta de todas as vidas é a morte’. Como também esquecer a máxima de Aldous Huxley: ‘A morte é a única coisa que não conseguimos vulgarizar completamente’? Bem, seria injusto omitir a sentença de Albert Camus: ‘Sempre existem razões para a morte, mas é impossível justificar a vida’. A reunião dessas citações converge para a situação-limite extremada: o sentido do suicídio planejado. Curiosamente, o enredo esquadrinhado por Zweig para ser cumprido em 22/2/1942, em parte pela fantasmagoria alimentada por alguns atos do Estado Novo, também levaria, 12 anos após (24/8/1954), Getúlio Vargas a igual desfecho.

Sob a condução ritmada e habilmente composta, Dines vai, capítulo a capítulo, descortinando a subjetividade atribulada de Zweig, dosando, com precisão, o peso dramático da atmosfera na qual vivia o mundo em meio às tramas da guerra. A justa combinação dos cenários, em âmbito individual e contextual, possibilita ao leitor o desfrute de uma narrativa tanto de apelo romanesco quanto de sólida informação de natureza histórica: síntese perfeita entre o escritor e o jornalista. Em nenhum momento, o texto, ao tratar das fraturas subjetivas de Zweig, derrama-se em melancolia romântica. Em nenhum momento, o texto, ao abordar as contingências histórico-políticas, se deixa trair por envolvimentos autoprojetivos. Em ambos os recortes, está presente o distanciamento crítico, na tentativa de preservar a verdade até onde o limite da contenção o permite.

Enfim, a escrita de Morte no paraíso, entre outras provocações, recoloca na pauta das reflexões a antiga (e não superada) questão: a verdade é sempre histórica, como preconizava Hegel, ou a verdade é sempre subjetiva, a exemplo do que afirmava Sören Kierkegaard? É problemático excluir qualquer das duas.

A atualidade da obra e a ‘estética da nazificação’

Embora o livro tematize uma realidade confinada a um período específico do mundo ocidental, sua grande força talvez resida na capacidade de convidar o leitor a realizar a leitura como uma experiência de natureza dialógica na qual o olhar sobre o passado melhor possa esclarecer os conflitos da realidade presente.

Que o nazismo foi sepultado em 1945 é um fato histórico. Como tal, pertence à ordem dos acontecimentos. Todavia, o mundo estará a salvo de uma ‘estética da nazificação’? A essa pergunta, não se deve seguir a ingenuidade de uma resposta afirmativa. A prudência crítica sugere o contrário. A leitura atenta talvez mobilize o leitor à percepção de que elementos constitutivos daquela época possam, até travestidos, ser reconhecidos nos atuais tempos. Algumas perguntas podem ser formuladas:

– A retórica exacerbadamente triunfalista em torno de eventos esportivos, a exemplo de como a mídia brasileira faz reiterado e abusivo uso, será um sintoma?

– O enredamento beligerante para onde está conduzindo o fanatismo religioso (e político) é outro sintoma, conforme alerta Amós Oz em Contra o fanatismo (Ediouro, 2004)?

– A desenfreada e ilimitada celebração da vida e da saúde pode abrigar o fermento e o fomento para estigmatizações?

– A ‘doença’ por corpo perfeito e auto-estima elevada bem se prestam a conceitos de ‘pureza’, ‘superioridade’ e outras derivações. Não haverá aí algo a preocupar?

– A rigidez espartana do ‘politicamente correto’ parece conter ingredientes de um certo tom ‘nazificante’, ou não?

– A excessiva exibição da morte do ‘outro’, a ponto de banalizá-la (a mídia também não se furta em abundantes imagens) não esvazia problematizações interiores quanto à relação profunda entre o ‘eu’ e a ‘morte’?

– Como encarar a gravidade de um suicídio? Como compreender a decisão de Zweig, em oposição à de Vargas? (É também aconselhável a leitura do clássico tratado, O suicídio, de Émile Durkheim (Martins Fontes, 2003)).

– Que sentido estrategicamente produtivo terá o indivíduo em apostar no pacifismo, se rodeado por crescentes práticas de extermínio?

– Até que ponto pode sobreviver a aposta na utopia, frente a apelos inadiáveis por ações concretas e emergenciais?

O saldo de uma grande obra reside na potência de suas reverberações. O livro de Alberto Dines confirma a assertiva. Por fim, parafraseando Carlos Drummond de Andrade que, no poema O sobrevivente, termina-o com um verso entre parênteses (‘Desconfio que escrevi um poema’), concluo que desconfio haver escrito um artigo…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro