Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entrevistas contam histórias de uma cidade

A leitura dos originais do livro Memórias de Cachoeiro, do jornalista Marco Antonio de Carvalho, me fez recordar, em diversas passagens, a doce figura do mestre João Madureira.


Guru de três gerações de estudantes cachoeirenses, João Madureira Filho transformava a cozinha de sua casa em prolongamento natural das salas de aula do Liceu. Entre rodadas de suco de manga e cafezinhos servidos pela Jandira, discutia-se da maiêutica socrática à profundidade do porto de Vitória. Além de médico ele era professor de geografia.


A política cachoeirense e os fatos históricos nacionais também eram temas constantes daquelas aulas informais. Dr. João, com seu humor ora fino ora cáustico, antecipava acontecimentos e nos ensinava a fazer conexões entre fatos e informações.


Daquelas reuniões vespertinas – muitas prosseguiam noite adentro, na Praça Jerônymo Monteiro – guardo muitas recordações. Dois ensinamentos, entretanto, ambos ligados aos temas tratados neste livro, me marcaram mais fortemente. O primeiro, premonitório, quando ele anunciou que a esquerda cachoeirense se dissolveria e a direita iria se consolidar como liderança única no Sul do Estado. O segundo era uma simples observação, que ele repetia à época da escolha do Cachoeirense Ausente nº 1. Dizia: ‘Ser ausente é fácil. Difícil mesmo é ser presente’.


Essa reflexão não era uma crítica aos que deixavam a cidade e muito menos à idéia de Newton Braga em homenagear, todos os anos, um cachoeirense na festa da cidade. Era a constatação de quem já percebia a perda de importância econômica de Cachoeiro. Permanecer era mais penoso que sair.


Foram décadas em que a cidade, como bem observou outro mestre, Deusdedit Baptista, ‘liderava e não admitia ser liderada’. Os cachoeirenses, culturalmente ligados ao Rio de Janeiro, eram orgulhosos, conscientes da influência que tinham na política capixaba. Como bem lembrou Ormando Moraes, ‘Vitória só ficou importante após os anos 60’.


Para recuperar a memória de épocas já passadas, Marco Antonio abandonou a sua carreira jornalística em São Paulo e Rio de Janeiro e, durante sete anos, se dedicou a gravar entrevistas e a pesquisar histórias cachoeirenses.


Na verdade, seu objetivo era conhecer mais profundamente o caldo cultural que influenciou e ajudou na formação de Rubem Braga, principalmente entre as décadas de 20 e 30, quando as transformações sociais brasileiras se fizeram sentir intensamente na cidade. As pesquisas foram tão produtivas que renderam este livro sobre a vida do cronista em nossa cidade e material para um segundo, que ainda escreve, sobre a ascensão do cronista como um dos maiores jornalistas brasileiros.


Memórias de Cachoeiro contém 29 entrevistas de companheiros, amigos e parentes de Rubem e Newton Braga. Livro de leitura fácil, desperta a atenção a repetição de fatos narrados por diferentes testemunhas, a recorrência das lutas políticas, algumas violentas, das esquerdas contra os integralistas.


Rubem Braga não tinha a simpatia dos comunistas, segundo revela o professor Waldemar Mendes Andrade, e participou ativamente dos acontecimentos. Foi um dos fundadores da Aliança Libertadora Nacional, na década de 30 e do Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1945. Eram partidos contrários à ditadura de Vargas, mas independentes do ‘partidão’, como era chamado o PC até recentemente.


Testemunha e protagonista


À proporção em que o leitor mergulha nos depoimentos, passa a entender como os eventos políticos que revolucionaram o Brasil dos anos 30 influenciaram a vida cachoeirense. Por essa razão, devemos louvar o paciente trabalho de garimpagem do autor, que muitas vezes teve de insistir nos pedidos de entrevistas, devido à desconfiança de amigos e parentes da família Braga. Impressiona imaginar que muitas revelações, algumas inéditas, poderiam ter sido perdidas. Quatro entrevistados – Gil Gonçalves, Deusdedit Baptista, Francisco Madureira e Yedda Braga, irmã de Rubem Braga – felizmente não nos deixaram órfãos de suas histórias. Partiram, mas foram generosos ao registrar suas memórias neste livro.


Nessa época atual de transmissão instantânea de informações globalizadas, em que há uma tendência natural em valorizar acontecimentos provenientes dos países mais ricos e de esquecer fatos recentes, é importante preservarmos a nossa própria história. Os cachoeirenses sempre foram bairristas e orgulhosos da fama de cidade exportadora de talentos.


A leitura dos depoimentos selecionados reforça a certeza de que a antiga efervescência política de Cachoeiro já não existe mais. O cenário comprova os acertos da profecia do Dr. João quando, há quase 30 anos, previu o esvaziamento da oposição às lideranças de centro-direita em nossa cidade.


Por isso tudo, lamento que o mestre João Madureira, que também nos deixou prematuramente, seja o grande cachoeirense ausente neste livro. Testemunha e protagonista de uma época importante da nossa história, ele não podia nem pode ficar de fora. Por isso, homenageio-o nesta curta e despretensiosa apresentação, relembrando esses episódios.


Apesar de ter sido um dos seus discípulos menos aplicados, tenho certeza de que, se ele pudesse ler este livro, mudaria a sua opinião sobre a dificuldade de ser um cachoeirense presente. Por certo concordaria com a nossa tese de que Marco Antonio é um típico caso de um cachoeirense ausente que se fez presente para resgatar páginas importantes da memória de Cachoeiro de Itapemirim.


(*) Jornalista




Da abundância do coração


Sérgio Bermudes




Texto da ‘orelha’ de Memórias de Cachoeiro – Encontros com quem fez o Século XX, de Marco Antonio de Carvalho, 236 pp., Editora Booklink, Rio de Janeiro, 2005; R$ 34; intertítulo da redação do OI


Em abril de 2002, publiquei o livro As uvas da raiva. Reuni nele um conto e uma coletânea de textos não-jurídicos, muitos inéditos, outros publicados na minha coluna quinzenal, na revista eletrônica No. ‘Como estas páginas aspiram à categoria de crônica, e várias delas falam em Cachoeiro de Itapemirim, dedico este livro à memória de Rubem Braga, fiel à nossa terra, como eu tento ser.’ Assim escrevi na pequena nota introdutória.


Uma das crônicas, ‘A devoção de Gil Gonçalves’, lembra o comentário de uma amiga: ‘Não se pode ler uma página sua, ouvir uma aula, assistir a uma palestra, conversar um pouco com você, sem que logo apareça a sua terra’. Respondi que se compreendem as reminiscências da terra natal porque o homem entesoura no coração as suas boas lembranças. Naturalmente, as evoca amiúde, ‘porque da abundância do seu coração fala a boca’ (São Lucas, 645).


Estas Memórias de Cachoeiro, de Marco Antonio de Carvalho, provam a verdade da minha resposta. Elas enfeixam depoimentos sobre a ‘doce terra onde eu nasci’, como no verso da música de Raul Sampaio, cantada aos quatro ventos, num sucesso retumbante, por Roberto Carlos, para falar de dois conterrâneos ilustres. Cachoeirenses de nascimento ou de adoção, todos muito ilustres e representativos, escolhidos com todo acerto, abriram o coração e tiraram dele as suas lembranças sobre diferentes aspectos da história, das instituições e da cidade.


Dá gosto ler e reler estes depoimentos, colhidos com perseverança e depois editados com a competência de Marco Antonio de Carvalho, jornalista grande, que entende do riscado e, por isso, soube fazer trabalho de primeira. Cachoeiro renasce e revive na palavra de testemunhas da sua história, como Margarida Vivacqua, Adelson Moreira, Waldemar Mendes Andrade, Deusdedit Baptista, que se tornou uma instituição cachoeirense; o dr. Dalton Penedo, em cujas mãos eu nasci; o dr. Wilson Resende e o dr. Athayr Cagnin, professores admiráveis do Liceu, testemunhas do registro civil do meu nascimento.


Os depoimentos das minhas amigas Yedda Braga Miranda e Anna Graça Abreu falaram saudosos do irmão Rubem Braga, sem dúvida o maior dos cachoeirenses, pela vida e pela obra que, como já escreveu transformou a crônica num gênero literário autônomo e fez das dele um veículo das suas memórias e do seu lirismo.


A vantagem


Eu não sabia que Rubem deixou Cachoeiro por causa do incidente com o prof. Ávila Júnior, outra instituição da cidade. O episódio, narrado por dona Gracinha, confirma que a vida prega as suas peças e termina afastando pessoas que tinham tudo para gostar uma da outra, até pelo temperamento. Prof. Ávila, tal como Rubem, no depoimento da irmã, ‘era virado para dentro’.


Errará feio quem supuser que este livro só interessa aos cachoeirenses, no seu bairrismo (uma forma de patriotismo, conforme Afrânio Peixoto) e na sua saudade. Nada disso. Pelo contrário, dos depoimentos que encerra, colhidos, selecionados e editados por Marco Antonio de Carvalho, a quem aplaudo com entusiasmo, esta obra reconstitui uma cidade do interior, no desenrolar de um século. Por isso perde o caráter paroquial para interessar como contribuição de feições históricas, sociológicas e políticas, à compreensão do Brasil.


É claro que este livro nos emociona a nós, cachoeirenses, porque atiça as nossas lembranças. Ele ajuda a explicar o nosso orgulho, traduzido em manifestações como esta, feita numa das páginas do meu livrinho: ‘Diga com sinceridade: de quem é a vantagem? Deles ou nossa, que conhecemos Paris, depois de ter vivido em Cachoeiro de Itapemirim?’


(*) Advogado e professor de Direito na PUC/RJ