Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entrevistas muito especiais

[do release da editora]

Em tempos de 15 segundos de fama e fome midiáticos, o jornalismo, muitas vezes, parece tornar-se apenas mais um espetáculo. São cada vez mais raras as abordagens de fôlego, seja nos textos ou entrevistas, nos impressos e nas imagens. E, conseqüentemente, cada vez mais raros aqueles capazes de fugir a essa tendência. Edney Silvestre é um deles.

Correspondente internacional da TV Globo em Nova York durante 12 anos – incluindo toda a década de 1990, período em que tudo de mais importante no mundo fervilhou nos Estados Unidos. Edney Silvestre reúne agora alguns dos momentos mais marcantes desse período em Contestadores, que traz 18 entrevistas reveladoras com personalidades como Camille Paglia, Salman Rushdie, Paulo Francis, Edward Said e Norman Mailer. Capaz de escapar às obviedades e extrair respostas surpreendentes de seus entrevistados, Edney demonstra não somente preparo intelectual e informação para encarar as celebridades à sua frente, mas, sobretudo, lança mão de extrema sensibilidade e humanismo para construir entrevistas antológicas.

A visão e o olfato aguçados do jornalista experiente, visionário e com uma bagagem cultural impressionante trouxeram para o Contestadores o lingüista, ensaísta, ativista político e dos direitos humanos Noam Chomsky, crítico contundente da política externa americana e sempre na contramão do pensamento conservador, com mais de 40 livros publicados. Chomsky foi eleito, em 17 de outubro de 2005, o maior intelectual público do mundo, numa pesquisa da Prospect-Foreign Policy, publicada em várias revistas inglesas e no The Guardian.

Boa parte das entrevistas compiladas em Contestadores foi produzida para o programa Milênio, da Globonews. Edney Silvestre conta, de forma bem-humorada, os percalços para entrar em contato com algumas das personalidades. A barreira de agentes, secretários e relações-públicas é um dos desafios impostos a um jornalista em Nova York. Para driblá-la, Edney tentou, por vezes, a abordagem direta, em locais públicos, com seus alvos. Nem sempre a estratégia mostrou-se eficiente. A comediante Madeleine Kahn, por exemplo, saiu correndo de uma fila de teatro, apavorada com a aproximação do jornalista brasileiro.

Ossos do ofício. O que importa, mesmo, são as entrevistas que Edney realizou.

Contestações em blocos

O título Contestadores revela o caráter inquieto, inovador e muitas vezes subversivo de seus entrevistados nas mais diversas áreas: artes, política, educação, jornalismo, literatura, etc.

O livro é dividido em cinco grandes blocos, a partir das características dos entrevistados. Lá estão os ‘Boxeadores’, combativos, polêmicos e controversos personagens como Norman Mailer, Camille Paglia, Paulo Francis e Noam Chomsky.

Um dos maiores escritores do século 20, Mailer faz constatações que sintetizam a perplexidade diante dos acontecimentos de uma era turbulenta. É o caso dessa comparação: ‘Neste século o escritor está numa posição análoga à do ecologista, que olha em volta, vê o mundo destruído diante de seus olhos e se sente impotente’.

Amado ou odiado, mas invariavelmente brilhante, o jornalista Paulo Francis, morto em 1997, destilou doses de sarcasmo na entrevista a Edney, que alterna com surpreendentes momentos de candura. Sobre o ofício jornalístico, Francis definia com autoridade: ‘O jornalista é um vanguardista da opinião, um homem que mostra as coisas’.

Cordialidade e ímpeto

Na categoria ‘Tempestuosos’ o jornalista reuniu nomes capazes de abalar estruturas, até mesmo sociais, com seus escritos. Desse grupo fazem parte Edward Said, Salman Rushdie e Edward Albee.

O escritor indiano Salman Rushdie confessou seu repúdio à fama que o livro Versos satânicos lhe concedeu em função de sua cabeça ter sido colocada a prêmio pelos aiatolás do Irã. ‘Eu queria me tornar um escritor a quem as pessoas dessem importância em razão de seus livros. E não devido a um fato de sua vida’, desabafou ele a Edney Silvestre.

Entre os chamados ‘Cordiais’, ele entrevistou artistas brilhantes em suas respectivas áreas. A tal cordialidade e o tom quase sempre sereno não significa que as entrevistas de Juliette Binoche, Liv Ullman, James Taylor e Lauren Bacall não apresentem momentos contundentes e de rara emoção genuína.

Temas como a fama, a perda da fama e a passagem do tempo permearam a entrevista com Lauren Bacall. Forte e comovente, uma das maiores estrelas de Holywood fala sobre o casamento com o mito Humphrey Bogart em passagens como esta: ‘Bogart morreu há mais de quarenta anos. É um bocado de tempo. Eu detestaria pensar que nestas quatro décadas também fui vista como morta’.

Militância e utopia

O grupo dos ‘Militantes’ traz revelações importantes de figuras como Harry Belafonte, Alice Walker e Nan Goldin, gente cuja trajetória pessoal e profissional é absolutamente indissociável do ativismo político.

Autora de A cor púrpura, Alice Walker discorre sobre religião e segregação racial, entre outro temas. Ela fala sobre seu impacto inicial negativo quando viu a adaptação de Steven Spielberg para o cinema. ‘Tive dor de cabeça na primeira vez em que assisti porque incluíram muitas coisas no filme que não estavam no livro e achei que diversas passagens do livro foram mal interpretadas pela equipe. E eu vi todas as falhas… Levou um tempo até que eu conseguisse ver o filme como o que realmente é: uma outra produção separada. Hoje eu gosto bastante’.

Já o ator e cantor Harry Belafonte, amigo, companheiro inseparável e apoiador incondicional do reverendo Martin Luther King, abre sua visão de mundo que explica sua opção pela militância constante e ininterrupta em sua vida: ‘Luto contra o racismo, não acredito em fascismo, em opressão, em supressão da opinião diferente. Também acredito que as mulheres têm os mesmos direitos dos homens, que as crianças não deveriam ser exploradas, que os gays têm o direito à escolha sexual que queiram fazer. Tudo o que é melhor para o coração humano: é disso que sou a favor’.

O bloco final, dos chamados ‘Visionários’, tem entrevistas de personalidades como Gloria Steinem, Michio Kaku, Tony Kushner e Paulo Freire. Em seus ramos de atividades, eles vão muito além dos jargões estéreis que embalam certos eventos e rebanhos que entoam a ladainha de um outro mundo possível. Propositivos, atuantes, brilhantes, tais figuras fazem disso uma prática cotidiana e dividem preciosos segredos com Edney Silvestre.

Utópico, revolucionário, o educador Paulo Freire (1921-1997) surpreendeu-se com a pergunta final do jornalista. Aparentemente simples, a questão revela o talento do entrevistador e a generosidade de seu entrevistado.

Professor, como o senhor quer ser lembrado?

Paulo Freire – Esta é ótima. Esta é ótima. Essa é uma pergunta muito gostosa. Eu até vou aprender a fazer essa pergunta a outras pessoas. Sabe que eu nunca tinha pensado nisso? (…) Eu gostaria de ser lembrado como um sujeito que amou profundamente o mundo e as pessoas, os bichos, as árvores, as águas, a vida.

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Introdução de Contestadores

Edney Silvestre

Era uma idade de ouro, no centro do mundo, e eu estava lá. Não que tivesse noção disso. Não naqueles tempos. Não naquela Nova York de 1990, correndo de um lado para o outro – e de um canto ao outro dos EUA – para cumprir minhas tarefas como correspondente do jornal O Globo, primeiro, e depois, na mesma função, para a TV Globo.

Só fui me dar conta muito tempo depois, no novo século, em outro país.

Era 24 de setembro de 2003. E eu estava no aeroporto de Vitória (ES), aguardando a hora de embarcar de volta para o Rio, após dois ou três dias de gravação para o programa Globo Repórter. A caminho da sala de embarque vi a foto de Edward Said na primeira página de O Globo. Eu o havia entrevistado para o programa Milênio, em agosto de 1997. Na fotografia ele parecia magérrimo, pálido, muito abatido, com evidentes sinais de câncer contra o qual lutava havia 12 anos. Mesmo assim, sorria. Que homem corajoso, pensei. Então vi a manchete. Edward Said tinha morrido no dia anterior.

Foi ali, naquele momento, que fui tomado pela consciência, pela sensação de imenso privilégio que tinha tido, ao longo dos doze anos que vivi em Manhattan. Além do professor Said, eu tivera a oportunidade de conhecer alguma das melhores, mais atuantes, mais originais cabeças que circulavam pelos EUA na década de 90, refletindo, criticando, desconstruindo, e remodelando o pensamento e as ações do século que teve duas grandes guerras; viu a maior movimentação e exílio de povos de toda a história; as mais abjetas ditaduras e os mais cruéis genocídios; o fim do colonialismo, do comunismo, das repúblicas de bananas; o surgimento da televisão e o estabelecimento de Hollywood como padrão de estética; a transformação da Europa em continente-satélite, da Ásia em tigre industrial, da América do Norte – e dos EUA, em particular – em poder homogêneo do planeta; o século que deu a luz a movimentos ecológicos, rock and roll e juventude como grupo etário de consumo, suicídio como forma de terrorismo; de feminismo, movimento negro e movimento gay como força de reivindicação de minorias; da maconha, cocaína, LSD, crack, heroína, ecstasy e outras drogas criando um comércio internacional mais forte e mais rico do que centenas de nações do mundo; no neocapitalismo, do terrorismo de Estado; do ato sexual com estagiárias com atalho para derrubada de presidentes.

Seleção justa

Assim marchávamos para o fim do milênio e eu achava que havia muita gente cujas trajetórias e pensamentos poderiam, deveriam ser mais conhecidos no Brasil.

Com essa idéia na cabeça e três fitas de vídeo embaixo do braço, em julho de 1996 desembarquei no aeroporto internacional do Rio de Janeiro.

As fitas eram o piloto do programa que eu tinha em mente. Com título, inclusive: se chamaria Milênio. Apresentaria entrevistas com personagens importantes, de uma forma ou de outra, no mosaico cultural do final do século 20. Escritores, artistas plásticos, músicos, filósofos, políticos, num panorama que desse ao telespectador informação, diversão, entretenimento.

Os exemplos que eu trazia eram: o economista e historiador John Kenneth Galbraith, em entrevista a Paulo Francis; a premiadíssima atriz da Broadway Cherry Jones; e o performático grupo de vanguarda Blue Men; que eu mostraria a Evandro Carlos de Andrade e Alice Maria – respectivamente o diretor de jornalismo da TV Globo e a diretora da Globonews – e Leticia Mohana, que organizava o arcabouço do futuro canal de notícias.

Voltei para Nova York alguns dias depois, sem decisão alguma por parte deles.

Quando o canal foi inaugurado, em outubro daquele ano, Milênio fazia parte da programação. Parte do que foi apresentado está aqui, em uma seleção que me parece justa, justamente um quadro com boas, interessantes, frequentemente polêmicas, raramente rasas, sempre originais idéias que podem, quem sabe, conduzir a um novo século melhor, mais justo, mais humano.