Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Erotismo em letra de fôrma

Em 1883, um jornalista da Revista Ilustrada, escondido sob o pseudônimo de Alter, reclamava em sua coluna – ‘Livros a ler’ – dos autores que, fazendo uma literatura escandalosa, enriqueciam a cada dia. E mais: dizia que títulos dessa natureza ‘brotavam como cogumelos’. Pois era como cogumelos que florescia, em finais do século XIX e começo do XX, certa literatura popular largamente consumida por uma crescente população carioca alfabetizada.

Muitas eram as publicações populares, mas Alessandra El Far seleciona com rigor e bom humor duas categorias de romance: os chamados ‘romances de sensação’ e os ‘romances para homens’. Se hoje são raros aqueles que se lembram de Elzira, a morta virgem, de Maria, a desgraçada ou, ainda, de Casamento e mortalha, na época não eram poucos os que, em busca de dramas emocionantes, mortes inesperadas e crimes violentos, recorriam a essa ‘literatura de sensação’. Aí estava uma trama ‘sensacional’, que desafiava os padrões rígidos da sociedade patriarcal, regida por normas e comportamentos bastante estritos.

Por sua vez, os ‘romances para homens’ abusavam das cenas de sexo. Neles havia mulheres que se prostituíam, padres que rompiam com o voto de castidade, maridos que se esqueciam de seus casamentos, adolescentes que cedo experimentavam as aventuras amorosas, casos de incesto e de adultério. Como o próprio nome indica, eles se referiam a um universo ‘impróprio para mulheres’, por serem estas, numa visão da época, tão delicadas e influenciáveis pelos encantos da narrativa.

E chegavam aos milhares as edições de ‘livros para homens’, como O aborto; Os serões do convento; Volúpias, amar, gozar e morrer; Memórias de frei Saturnino; Vôo da inocência ao auge da prostituição ou memórias de Miss Fanny; Os crimes do amor; Sensações fortes; Cocottes e conselheiros; Malaguetas; Camarões apimentados, que faziam a alegria de, entre outros, Pedro da Silva Quaresma, proprietário da Livraria do Povo. Sucedendo às famosas Garnier e Laemmert, sua editora publicou diversos enredos desse teor, aderindo a um claro processo de popularização do livro, possível graças ao aprimoramento das técnicas de impressão e de divulgação.

Diálogos obscenos

O leitor será, assim, convidado a percorrer esse mundo das publicações – onde há livros para todos os gostos e bolsos, livrarias e editores –, mas entrará, sobretudo, no universo da literatura popular. Mais que isso, conduzidos pela escrita sensível de Alessandra El Far, descobriremos o enredo de alguns dos romances que prometiam cenas de luxúria, sexo e aventura. Tudo numa sociedade que se sustentava, como quem se segura num último fio de espessura fina, nos seus valores, os quais começavam a ser destruídos pelos novos tempos. Logo, essa literatura era produto e produção a um só tempo: espelhava um mundo em processo acelerado de mudança, ajudava a criá-lo, bem como corroborava sua própria dissolução.

Ou quem sabe tudo não passasse de um truque de narrativa? No fundo, esses autores pareciam fazer bom uso do conselho de Alice, a célebre personagem de Lewis Carroll. Afinal, a menina só seguiu o coelho branco até o País das Maravilhas porque não se interessou pelo livro que sua irmã lia à beira de um lago. Depois de ter tentado, sem sucesso, prestar atenção no conteúdo, concluíra: ‘De que serve um livro sem figuras nem diálogos?’. Não por acaso, os editores do Oitocentos caprichavam no que podiam para agradar ao leitor: diálogos obscenos, desfechos imprevisíveis e, sem dúvida alguma, cenas de tirar o fôlego.